segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Manuel Padeiro, líder quilombola


Quando a equipe de Fernando e Duda Keiber, junto a professores da UFPel, projetaram um festival de cinema para Pelotas pensaram, como objetivos principais, em estimular a criatividade dos futuros cineastas e em que a cidade se beneficiasse desse foco cultural, também como centro econômico e turístico.
Já com tradição cultural e artística, Pelotas ainda precisaria desenvolver-se como referência regional e nacional na área cinematográfica. Foi em nossa cidade, há cerca de cem anos, que os primeiros filmes brasileiros foram rodados e a falta de recursos minimizou a criação de empresas e de novas obras. Ficamos como uma cidade de muitas salas de cinema, e hoje até isso mesmo chega à sua mínima expressão.

O projeto de um festival de cinema em Pelotas precisava de um traço próprio, diferente dos outros festivais que já existem, e isso devia apoiar-se também num nome de uma figura inspiradora ou patrocinadora da criatividade. O festival não seria numa sala de cinema moderna (em Pelotas só temos salas antigas e desativadas), mas usaria equipamentos modernos, com projeções ao ar livre, em espaços abertos.

O lugar escolhido foi o Instituto Trilha Jardim, no 7º distrito, denominado Quilombo, zona rural de Pelotas. Foi precisamente ali que apareceu a figura de Manuel Padeiro, um líder quilombola pelotense do século XIX (na grafia da época: Manoel Padeiro).

Manuel Padeiro foi escravo de Boaventura Rodrigues Barcelos (1776-1855), poderoso fazendeiro. Note-se, pelo nome, que ele se identificava mais com seu ofício (há registros que anotam "Manuel Pedreiro") em vez do sobrenome do patrão (em toda a América e o Caribe, os submetidos adotaram "filiação" portuguesa, espanhola, inglesa ou francesa). Em todo caso, tal nome não podia soar mais português, tanto pelo prenome como pelo ofício. À direita, escultura de Manoel Padeiro, feita por José Inácio Santos do Nascimento (blogue Sopapo do Padeiro), o Zezinho Santos.

Acredita-se que o líder africano tenha nascido na Costa do Ouro, de onde provinham muitos escravos. Transformou-se num Zumbi dos Pampas, formando grupos de resistência contra a escravidão, a 30 km do centro econômico de Pelotas. Os capitães-do-mato desistiam da caçada humana dos "fujões" ao adentrar a chamada Serra dos Tapes, terreno montanhoso compartilhado com os índios. Formou-se uma série de quilombos desde 1834, e o maior deles ficou conhecido pelo nome de seu líder, Manuel Padeiro, "considerado pelos seus o enviado de Oxalá" (citação do artigo de 2010 Remanescentes de quilombos pelotenses: paradigma emergente, dignidade humana e propriedade, dos autores Henning, Linhares, Gomes e Leal). Nesses redutos havia mulheres, mas a maioria eram homens (80% ou mais).

Como na região de Pelotas a população negra era muito mais numerosa que a branca, a hipótese de uma revolta em massa gerava muito medo nos fazendeiros e nas autoridades políticas, pois seria o fim do sistema escravagista. Os líderes negros eram vistos como criminosos, os escravos como perigosos e muitas vezes a rebeldia se transformava em uma espécie de guerrilha, com assaltos organizados, raptos, incêndios e assassinatos. Com a Revolução Farroupilha, iniciada em 1835, os senhores desviaram recursos para lutar entre eles, e muitos escravos fugiram. Pelotas era uma espécie de barril de pólvora prestes a explodir. A tensão relacionada com a rebeldia dos escravos se mantinha graças à comunicação solidária entre senzalas e quilombos. A informação provém do artigo de 2007 Pelotas na primeira metade do século XIX: uma cidade que a historiografia rotulou ou esqueceu, do historiador Caiuá Cardoso Al-Alam.

O trabalho citado acima (de Henning, Linhares, Gomes e Leal) conta que o término da Revolução Farroupilha, em 1845, possibilitou ao governo enviar militares ao quilombo de Manuel Padeiro, onde se estimava de 600 a 800 habitantes ("Memórias da Escravidão", Zênia de León, 1991). Em 1848, o Segundo Regimento de Cavalaria de São Leopoldo, composto de alemães voluntários, mais a guarda nacional e uma milícia local destruíram o quilombo, dizimando a população. A morte de Manuel Padeiro teria ocorrido naqueles dias. Hoje restam grupos quilombolas na região, estudados por pesquisadores, principalmente da UFPel.

Outros estudos sobre a história do quilombo de Manuel Padeiro:
  • "O Negro no Sul do país", de Mário Maestri (1997). Em: Joel Rufino dos Santos (Org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Negro Brasileiro Negro nº 25.
  • "Pelotas e o quilombo de Manuel Padeiro na conjuntura da Revolução Farroupilha", de Flávia de Mattos Motta (1985). Em: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Porto Alegre, v. 13, p. 111-115.
  • "Escravidão e Resistência: Quilombo na Serra dos Tapes", de Dilson Marsico (1986). Em: A. Barreto (Org.). Cadernos do ISP n°10. Pelotas: Ed. UFPEL.
  • "Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil", de João José Reis e Flávio dos Santos Gomes. Ed. Cia. das Letras (leia um trecho no blogue Sopapo do Padeiro).
Homenageando a história negra em Pelotas (das mais marcantes no Brasil escravocrata), a evocação do nome de Manuel Padeiro para um festival de cinema em Pelotas, em 2009, traçou uma linha paralela metafórica entre a reinserção deste "ídolo" – bom para uns, mau para outros – e o processo modernizador e democratizador do cinema, arte, técnica e modo de expressão de todas as camadas sociais. O antigo líder rebelde empresta, agora, seu nome a outro processo de libertação. Na arte, a dor e o sangue se transformam em coisas novas e reveladoras de um melhor ser humano, e a morte se transforma em vida, para que a humanidade não se destrua, mas sim se construa a si mesma.
A segunda edição do Festival Manuel Padeiro começa nesta quarta (1) e segue até sexta (3), com sessões de filmes às 14h no MALG e às 20h no Parque da Baronesa, ao ar livre (levar cadeiras e roupa de inverno). Às 10h dos dias 2, 3 e 4, coletivas com os cineastas dos filmes da noite anterior.
Imagens da web

6 comentários:

Manoel Magalhães disse...

Parabéns, Vidal. Excelente e elucidativo texto. Grande abraço.

Luiz Carlos Nunes Conceição disse...

parabéns bela história que ainda era desconhecida por mim.

Unknown disse...

Gostaria de poder tirar uma duvida, Minha vó Maria Lina dos santos ontava que a vó dela fez parte de um grupo de negros que fugiram sobre comando de Manoel Padeiro. Eu gostaria de conversar com algum historiador.meu nome no fecebuk é vera Macedo

Francisco Antônio Vidal disse...

Vera, sabe o nome completo da avó de sua avó? Vai ajudar na pesquisa que for feita.

Procure os historiadores citados no texto: Caiuá Cardoso Al-Alam, Ana Clara Correa Henning, Diego Furtado Linhares, Elbio Hermes da Silva Gomes e Robson Jardel dos Santos Leal. Os emails destes últimos estão nesta página:
africaeafricanidades.net/documentos/Remanescentes_quilombos_pelotenses.pdf

ascoresdoinvisivel disse...

Pretendo pintar uma tela sobre Manuel padeiro ouvi comentários que ele domesticou uma Jaguatirica animal parente da onça pintada que convivia no quilombo com ele fato ou invenção popular?

Francisco Antônio Vidal disse...

Seja fato ou não, nada impede que pinte a tela com liberdade criativa. Após duzentos anos, e sem registros escritos, a tradição oral deve ter criado muitos boatos. Quem pode dar uma opinião histórica são os escritores que citei acima. Abç