domingo, 11 de novembro de 2012

O Bilhete (XII)

XII  Final

E, lentamente, Madame Marie lhe foi traduzindo toda a carta, que dizia:
Paris, 16 de maio de 1940
Caro. Prazer. Reconheci-o logo. Estranhei apenas não ter vindo trajado de negro, conforme o combinado. Atribuo a um problema de lavanderia. Certo?
Anote: Tomaremos Luz, na madrugada de 30 corrente. Recomendo-lhe extremo cuidado. Você está sendo vigiado a partir deste momento. Será seguido em todas as horas que lhe restam em Paris. EVITE FALAR COM QUEM QUER QUE SEJA.
A mais simples comunicação sua com alguém implicará na sumária eliminação dessa pessoa, imediatamente. Basta desconfiarmos do mais leve relacionamento. Tal como aconteceu com Karl e Rudolph. Não podemos pôr em risco toda a operação. NÃO FALE COM NINGUÉM. Não deixe ninguém inocente morrer por sua causa, até partir esta noite.
Destrua este, como sempre. Lembre-se que sou francesa!
Auf wiedersen
Caroline

As tropas alemãs contornaram a linha defensiva francesa;
sem maior esforço, ocuparam Paris em 14 de junho de 1940. 
— A invasão de Paris! Então era isso! Veja, professora, ‘tomaremos Luz’ refere-se, sem dúvidas, à Cidade Luz — bradou, de pé, mal contendo sua agitação.

— Sim, chéri, e a invasão deu-se somente em 14 de junho, talvez porque a rede de espionagem se deu conta do erro em que a moça incorreu ao confundi-lo com o seu contato. Por este motivo devem ter ficado aguardando as consequências do equívoco que infelizmente não vieram, para eles.

Com os olhos apertados, procurando concentração, ele acedia com a cabeça. Tudo estava finalmente se tornando claro.

— Maldita Maginot vociferou Madame Marie, no seu orgulho ferido de francesa. — Os boches entraram em Paris porque nós, em França, acreditávamos na inexpugnabilidade da Linha. Nossos militares jamais aceitaram que os alemães pudessem transpô-la.

Ele testemunhou:

— Sim, devem ter sido surpreendidos mesmo, porque não se notava no ambiente parisiense nos dias que antecederam a invasão, quando lá estive, nada que lembrasse guerra em solo francês, principalmente Paris.

E o quebra-cabeça continuou sendo juntado:

Após a rendição francesa, em 23-06-1940.
— Chérie, quanto à reação agressiva das pessoas, é perfeitamente aceitável. Todos procuravam demonstrar total ausência de qualquer relacionamento com você, pois suas vidas corriam perigo, segundo o texto ameaçador. Hoje em França, sobretudo em Paris, é fortíssimo o tráfico de escravas brancas e de cocaína, provindos de Marselha, provavelmente as pessoas pensaram num envolvimento seu neste campo, onde a vida do ser humano não vale uma palha  concluiu Madame Marie com certa amargura em sua voz grave.

— E está bem claro também por que meu Chefe em Paris ordenou minha volta imediata. Houve preocupação de sua parte para com minha segurança  comentou reconhecido, ao encontrar a peça que se ajustava perfeitamente à sua curiosidade nas últimas semanas.

— Madame, chegamos ao fim deste autêntico folhetim. Penso que devo ir à Embaixada Francesa entregar este bilhete embora tudo já seja tarde demais  completou nosso herói.

— Perfeito!  exclamou a velha professora do idioma francês.  Creio ser o destino que deva ser dado a esta mal compreendida mensagem. Quem sabe as autoridades com ela possam desbaratar a rede, se ela ainda estiver atuando. Puxa, oxalá tenha esta carta algo de positivo, afinal quase nos enlouqueceu, não foi mesmo?

Despediram-se.

Ele caminhava ligeiro, até o ponto de táxi, próximo sempre empunhando a pasta de couro contendo aquela carta-mistério agora desvendada.

No caminho foi interrompido por um cambista lotérico que lhe ofereceu seu artigo, com o lacônico pregão: “Bilhete?” Ele olhou para o ambulante e com um sorriso enigmático e irônico, em marcha, respondeu: 

— Bilhete? Nunca mais!

Rubens Amador, setembro de 1979
Leia o episódio I
Imagens: Rio Blog (1) e CD História (2)

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