domingo, 9 de dezembro de 2012

Procópio Ferreira e seu maior aplauso

Teatro Guarani lotado, em 2010, no 1º Festival de Jazz
A Geral, acima das 2 linhas de camarotes, foi fechada nos anos 60
O teatro era o Guarany. O ano exato não me recordo, mas devia ser na década de 1940. No palco, Procópio Ferreira e Suzana Negri. Sei que a peça chamava-se “Ciúme”, de autoria de Louis Verneuil.

A casa estava lotada e aquele trabalho teatral tinha a singularidade de ser, todo ele, um diálogo entre os dois protagonistas citados. Procópio estava soberbo e Suzana Negri, experimentada atriz, seguríssima no seu personagem.

Eis que, em determinado momento, alguns engraçadinhos começam a proferir gracinhas lá no “poleiro”, a chamada “geral”, onde os preços eram bem populares. Naquele tempo, excluindo o Capitólio, todos os demais cinemas e teatros possuíam essa dependência, de cambulhada com pessoas que procuravam diversão a baixo custo. Frequentavam-na muitos maus elementos que com frequência prejudicavam o bom filme ou a boa apresentação teatral, com assovios e algumas piadas pesadas, acobertados sempre pela luz tênue do ambiente.

A princípio, Procópio mostrou-se com aparente indiferença e, com sua grande experiência teatral, continuou representando, sem se mostrar agastado com as impertinências. Os recalcitrantes, cada vez mais importunos.

O grande Procópio, então, ergue sua mão direita para Suzana Negri, que com ele contracenava, pedindo-lhe que interrompesse o diálogo. Suzana, frente a uma lareira crepitante, à direita do palco, silenciou e assumiu uma postura digna e elegante.

Procópio volta-se para a plateia, de frente, dando uns passos até a boca de cena. Faz, de início, um breve silêncio, como a medir as palavras, dominando o público, em estado de nervosa expectativa.

Então fala mais ou menos assim: cabeça erguida para a galeria perturbadora:
Biografia editada em 2000 pela Rocco
Senhores, eu sou um artista que ganha para representar. Muito jovem iniciei minha carreira. E enfrentei diversos públicos com minha arte. Daí conhecer inclusive a espécie de público que hoje se manifesta em lugar errado. Desde que a casa esteja lotada, como hoje, eu poderia fazer apenas o meu trabalho e sair daqui satisfeito, apesar do mau comportamento de meia dúzia de cidadãos que por certo erraram a porta.  
Estou a lhes dizer isto, não pela desatenção ao nosso trabalho, meu e de Suzana, mas pelo insulto que estão proferindo com tal conduta, à platéia de Pelotas, que aqui está (apontando para os camarotes), frisas e cadeiras todos estão tomados, literalmente, com que esta cidade tem de mais representativo: esta platéia que, pelo seu elevado grau de cultura é respeitada em todo o País. 
Creiam, eu não me sinto pessoalmente ofendido pelo seu condenável procedimento, a não ser, como já disse, por este público que aprendi a adorar nas diversas vezes em que aqui estive em seu convívio. 
Por isto tudo é que eu, inimigo da violência, prometo-lhes: se não se comportarem adequadamente, em consideração ao meu público, mandarei evacuar as galerias!

Voltou-se para Suzana Negri, e retomou o diálogo da peça, imperturbável. Mas teve de parar novamente por cerca de dez minutos, enquanto ouvia, emocionado, o que talvez tenha sido o maior aplauso de toda sua vida.

Rubens Amador

  • João Álvaro de Jesus Quental Ferreira (1898-1979), o Procópio Ferreira, viveu 80 anos [v. biografia]. Adotou o nome artístico por haver nascido no dia de São Procópio, 8 de julho.
  • Esteve em Pelotas em várias ocasiões, uma delas em 1947, que pode ter sido a referida nesta crônica. Em 1969, foi declarado Cidadão Pelotense pelo Prefeito Municipal (v. lei 1784).
  • A Editora Rocco lançou uma biografia baseada em seus manuscritos: Procópio Ferreira apresenta Procópio.
  • "Ciúme" (1946), com Bette Davis e Paul Henreid, baseou-se na peça de Verneuil (v. sinopse do filme com vídeo do trecho do concerto para violoncelo).

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