Desde suas origens, Pelotas vive uma contradição existencial entre o salgado e o doce. Por visão e iniciativa de um nordestino, as charqueadas se desenvolveram e deram riqueza à região. A carne conservada no sal era trocada por açúcar nordestino, o que facilitou a produção de docinhos de receitas portuguesas. Hoje a cidade tem fama como "capital do doce". No entanto, quem conhece a produção artística e intelectual de Pelotas (de antes e de hoje) percebe - nessa oscilação entre sal e açúcar - somente uma obsessão lucrativa, com pouca criatividade e pouco amor pela cultura local.
Ao amanhecer desta quarta (11), milhares de peixes apareceram jogados na orla do Laranjal, desde o Totó até o Pontal da Barra. Um funcionário da limpeza urbana disse que nunca tinha visto tantos animais mortos, mesmo sendo um fenômeno comum quando há mudança de ventos. Alguns ainda estavam vivos e, segundo a notícia, totalizaram 4 caçambas cheias (leia).
A causa parecia ser de tipo climático: uma inversão térmica na lagoa ou - o mais provável - uma diferença de salobridade da água, que para nós é refresco mas para os bichos é questão de vida ou morte. Por não ser grande novidade, a imprensa não deu maior importância.
O relatório da FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental), emitido sexta (13), descartou uma possível contaminação na água, e avaliou a quantidade de peixes mortos em 800 quilos. Segundo o laudo, uma entrada de água do mar trouxe, há duas semanas, um cardume de bagres à lagoa - que é de água doce. Terminado o fluxo salgado, os peixes jovens não conseguiram retornar e, tolerando a situação adversa alguns dias, foram levados ao que se chama Estresse de Sobrevivência. No dia 10 de agosto a temperatura subiu e os peixes morreram por não poder adaptar-se ao novo meio, não salgado e quente (leia a notícia).
O estresse normal ocorre quando mudanças ambientais ou dos organismos (os "estressores" ou causas de ansiedade) geram defesas adaptativas, com o sentido de sobrevivência. Um alto estresse pode causar doenças, inibir a reprodução e até causar a morte, quando os estressores são muitos ou se prolongam no tempo. Foi o caso destes peixes, que não puderam sobreviver na água doce.
No verão de 2007, uma grande mortandade de peixes no arroio Moreira (esq.) foi atribuída à salinização proveniente do São Gonçalo, apesar de que também existe poluição industrial na zona. O volume foi estimado - sucessivamente - em 12, 20 e 40 toneladas de peixes mortos (leia notícias). Na ocasião, um vereador pelotense fez notar, em sessão da Câmara, sua estranheza quanto à indiferença da população e do executivo ante a morte de peixes (Ata de 30-01-2007).
O desastre ecológico foi noticiado em todo o país, mas aqui em Pelotas é atribuído a um simples fato da natureza, que consideramos cotidiano: o avanço periódico das águas oceânicas no território "doce" continental.
Será possível fazer um paralelo entre nossa crise histórica (do vazio do charque ao crescimento do doce), nossa indefinição geográfica entre Brasil e Uruguai (medo de invasões castelhanas), as correntes marítimas que extinguem peixes por estresse (invasão do mar), e esse temor de ser nós mesmos e iniciar empreendimentos com segurança?
Seremos como peixes com a missão impossível de sobreviver em ambiente ora doce, ora salgado?
Foto 1: Marcel Ávila (DP)
Foto 2: Zero Hora
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