Aprendi a gostar de música clássica na infância. Na sexta-feira santa, para ser mais objetivo. As emissoras de rádio, à época, não tocavam outro gênero musical. Da manhã à noite o silêncio era estilhaçado pelos mestres da música. Debussy, Chopin, Beethoven, Tchaikovsky e tantos outros nasciam das ondas do rádio, preenchendo os vazios da casa. O aparelho de rádio a pilha ficava sobre o guarda-comida verde, onde os vidros de compotas de pêssego e figo eram guardados.
Eu me sentava à mesa da cozinha e ficava quieto, deixando a estranha música invadir-me, cavando em mim ninhos, onde deixaria sementes luminosas, as quais, à medida que fosse crescendo, germinariam e se espalhariam pelo corpo chegando à alma, amansando-a.
Minha mãe, desde muito cedo, impunha silêncio na casa. Nada de correrias, brincadeiras, gritarias. O dia era de luto. Nem o cabelo castanho ela penteava. Deixava-o cair sobre os ombros, brilhando sob o sol da manhã. Ao lado do relógio de pêndulo havia pequeno oratório, onde ela de quando em quando parava a orar. Dentro havia um Cristo crucificado de madeira, chagas em vermelho. Eu podia jurar que, às vezes, o sangue gotejava no chão da varanda.
Ilusão, claro. Todavia, Napoleão, gato angorá que vivia dormindo pelos cantos da casa não achava que fosse visão. Punha-se a lamber o sangue que pingava do oratório. Enquanto lambia, jogava a cabeça para cima, presumindo algo apetitoso enfiado dentro daquela coisa horrorosa pendurada à parede, que pertencera a uma tia velha que colecionara santos. Quando a visitávamos, enquanto os adultos conversavam, eu caminhava amedrontado pela grande casa de olhos nas imagens que pendiam das paredes, nas pequenas estatuetas sobre os móveis. Davam a impressão de mudarem de lugar, rirem e piscarem os olhos onde a tristeza e a aflição boiavam.
Quanto às manchas de sangue, de olhos fechados eu nutria a esperança de que sumissem. Enquanto isso a música me invadia inteiramente. Chopin era o meu músico predileto. Ainda é, aliás, embora eu o escute em outro contexto. À minha imaginação, motivada pelos acordes dos instrumentos, desfile de seres e coisas inimagináveis se formavam. E, claro, tentava entender, como ainda faço hoje, a relação daquela tristeza toda com os ovos de chocolate escondidos, os quais, quando presenteados, encheriam a casa de felicidade.
Hoje pela manhã, ao abrir a janela e olhar o dia bonito, nuvens brancas agarrando-se a pedaços de céu, meu pensamento voou em direção às sextas-feiras santas do passado. Fechei os olhos e o som do velho relógio de pêndulo regulando as horas inundou o silêncio.
Enxerguei-me à mesa da cozinha olhando os vidros de compota, enquanto Debussy, preguiçoso e enfadado, nascia do pequeno radinho de pilha, percorria a cozinha e se deixava engolfar pelo silêncio da manhã.
Manoel Magalhães
Clipe 1: Prelúdio opus 28 nº 15, em Ré Bemol Maior ("Gota d'água"), de Chopin (pianista Ferruccio Busoni, áudio de 1923)
Clipe 2: Clair de Lune, da Suite Bergamasque, de Débussy (pianista Lívia Rév, aos 88 anos, áudio de 2004)
Foto 1: Crucifixo na sacristia da Catedral Metropolitana de Pelotas
Excepcional crônica para ilustrar a repaginação do blog. Parabéns, Manoel, parabéns Francisco por este presnte.
ResponderExcluirCris
Conhecia Manoel do Amigos de Pelotas. Grande cronista, cujo talento é demonstrado nesta crônica maravilhosa, que nos leva à meditar acerca da religiosidade, da espiritualidade, da passagem do tempo... Notável! Parabéns
ResponderExcluirConcordo e acrescento: Manoel escreve com o ouvido, integrando os sons na linguagem, como fazia Neruda, tanto na sonoridade verbal como nas sugestões auditivas do texto. Este traço é mais típico das crônicas de Manoel do que dos livros.
ResponderExcluirE ainda o nosso escritor pelotense tem uma vantagem sobre o chileno: que ouve e sente a música clássica, colocando-a até como personagem, como neste relato. Não sei de escritores que façam isso. Só posso nomear um cineasta que faz isso nos seus relatos: Stanley Kubrick. Não me refiro a usar música como fundo ilustrativo ou coadjuvante no relato, mas colocá-la em primeiro plano, interagindo com os personagens.
Venho acompanhando o trabalho de Manoel há alguns anos, e constato feliz que está em seu melhor momento produtivo e criativo, sobretudo no dificil gênero da crônica. Sem medo de errar, diria que hoje, em Pelotas, talvez ele seja um dos melhores cronistas. Realmente, Francisco, percebe-se nos textos de Manoel sons e cheiros também, o que torna a leitura algo sensacional. O senhor fez uma análise inteligente. Parabéns. Rosalvo
ResponderExcluirColocar Manoel e Neruda lado a lado é ousadia do crítico, sem desmerecer o escritor local, de cujo texto gosto muito.
ResponderExcluirDe minha parte a ousadia que assumo não é simplesmente ter comparado dois criadores literários, mas dizer que Manoel supera Neruda no trato de elementos auditivos e musicais.
ResponderExcluirMas o crítico do crítico também é ousado. Por que não aceita a comparação entre dois poetas? Não pode haver traços comuns? O Nobel faz Neruda divino ou incomparável? Para um debate, será preciso que fundamente melhor, além do simples gosto.
Não quis desmerecer o trabalho do cronista Manoel Magalhães, cujo talento, como já disse, aprecio. Apenas achei um exagero de tua parte comparar Neruda com nosso escritor pelotense. Imagino que em termos de musicalidade, perfume, texturas e etc., Neruda está um pouco além, sobretudo porque já teve o aval do tempo, o maior dos críticos. Seria isso.
ResponderExcluirConcordo, até porque Neruda também teve seus começos. A intenção foi destacar um traço da escrita do nosso autor. Fica a ousada ideia para os estudiosos do futuro.
ResponderExcluirAcompanhemos, sem necessidade de comparar, a evolução de Magalhães em seu blogue, onde se pode ler "O Estreito de Magalhães".
Na arte sempre funciona 'o tempo dirá '... enquanto isso os artistas vão vivendo desapercebidos entre seus contemporâneos, passendo pelas ruas, fazendo seu trabalho, criando sua obra, para que um dia, quem sabe, possa deitar-se sobre os louros na eternidade.
ResponderExcluirParabenizo nosso crítico e amigo, Francisco Vidal por resgatar os artistas neste espaço cultural ainda em vida.
Quero, também, agradecer a escolha de minha tela que ilustra o novo visual do Blog Pelotas Capital Cultural.
Esta tela foi pintada no inicio do ano de 2011, nas dimensões de 1.00x1.00m e pertence a Série Janelas. Sinto-me agradecida e honrada por ter sido escolhida pelo olhar exigente de Francisco Vidal para compor o Trevo das Artes.
Um fraterno abraço.
Carmen Garrez
Comparações à parte, Manoel tem a capacidade de fazer do seu texto algo orgânico. Lendo-o a gente ouve música e sente cheiros. Não preciso de uma bola de cristal para saber que estou diante de um escritor dos melhores, que tem na infância o registro de suas melhores e mais emocionantes crônicas. Gil
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