A crônica "O silêncio das cadeiras" faz parte do livro "Rastros num Caminho: jogos de ficção e realidade", de José Luís Marasco Cavalheiro Leite, publicado em Pelotas pela Satolep Press (2013), com ilustrações de Pedro Luís Marasco da Cunha.
A assembleia de ouvintes desaparece sob o ruído das tertúlias. |
Cumpriram, mais um dia, o papel que lhes incumbia (a causa final de suas existências): sustentar corpos, que sustentam cabeças, que sustentam ideias.
Ficam, de regra, reunidas em torno de mesas, onde se formam grupos de pessoas que falam dos mais variados assuntos.
Suportam pesados corpos que, às vezes, carregam pesadas consciências. Ouvem tudo o que ali se diz; sabem de paixões, de traições, de amores espúrios, são testemunhas de mirabolantes teses científicas, também das mais chulas impressões (geralmente pronunciadas acerca de mulheres que desfilam nas calçadas, vistas através das amplas vitrines que circundam o espaço onde se espraiam).
Veem, com frequência, manifestarem-se infidelidades a acertos políticos trabalhosamente costurados. Conhecem inúmeras declarações de compromisso que, no dia seguinte, já estarão esquecidas. Flagram insinuações de interesse amoroso, de onde jamais se poderia esperar que brotassem. Já viram inusitadas aproximações e mais de um comprometedor roçar de pernas.
Ante a infinita paciência das cadeiras, todas as opiniões são relativas. |
Já conheceram planos de paz para o Oriente Médio. Ouviram veementes acusações às interferências americanas no Afeganistão. Houve quem infundisse nelas sentimentos de ódio a ditadores árabes, e, já, em outro momento, assumiram um ânimo de revolta, em face de exortações veementes, contra as sempre tendenciosas resoluções das Nações Unidas.
Perceberam também a relativização de julgamentos sobre fatos. No geral – sabem elas bem –, o aficionado por um time ou por uma grei partidária sempre desculpa nos seus o que não perdoa nos outros.
São, seguidamente, arrastadas de uma mesa a outra, o que lhes rouba, em tais ocasiões, a possibilidade de formar um juízo melhor sobre o assunto que, antes, estavam apreciando. Pior, em alguns casos, no novo grupo formado, ocorre de virem a tomar conhecimento de argumentos inteiramente dissonantes aos que, no anterior, ouviam.
Refletem sobre a relatividade de tudo e chegam a admitir que, afinal, ninguém tenha razão sobre nada.
Confundem-se. Têm sobradas razões para pensar que as teses que ouvem, notadamente quando se prendem a questões locais, estão profundamente vinculadas a interesses que, vez e outra, acabam sendo mencionados às claras.
Sem cadeiras que suportem debatedores, não há contraditório nem especulações. |
Talvez, porém, se assim fizessem, desmanchariam a atração que aquele lugar exerce sobre tantos: um centro de prosa descomprometida, um parlatório democrático, uma tribuna aberta à palavra de qualquer pessoa, um lugar do contraditório, da discussão, um espaço tanto para a divergência como para a convergência, um recanto próprio para expressar paixões.
Para tantos, também, um refúgio em face da dureza da vida doméstica, com suas desavenças, desencontros e malquerenças. Para outros, bem ao contrário, o preenchimento do amargor da falta de uma vida doméstica. Um lugar para deixar o tempo passar...
Ao fim do expediente, já noite alta, aguardam, em providencial e indispensável silêncio, a limpeza do lugar para a rotina de outro dia, no qual tudo se repetirá, como ocorre há décadas naquele tão essencial recanto pelotense, o institucional Café Aquário.
José Luís Marasco Cavalheiro Leite
Dentro, a instituição. Fora, a curiosidade. |
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