Após jejum de filmes razoáveis, uma bela obra em exibição no Shopping Pelotas. Em duas horas, seis relatos que espiam o abismo. Cada episódio uma sentença. Reunidos, chegaram com fôlego à indicação para o Oscar de filme estrangeiro.
“Relatos selvagens” não levou a estatueta. O que pouco importa, considerando-se que “Selma” – aborda a questão negra nos EUA – também não venceu como melhor filme. Enquanto o Oscar prossegue “selvagem”, contundentes e lúcidos relatos aguçam a sensibilidade e a inteligência.
Cartaz holandês de "Relatos Salvajes", retrato animado do nosso lado psicótico. |
Com direção do talentoso Damián Szifrón, “Relatos selvagens” também remete à inescapável comparação com a produção cinematográfica no País que “Lava a Jato”. Nem tudo é ruim, mas têm sido frequentes as idiotices cujos elencos, para atrair bilheteria, escalam celebridades das novelas de tevê.
Pasternak
Na abertura, voo emblemático. No avião, poucos minutos são suficientes para inquietar. E a “turbulência” é tão intensa que sacode, além dos passageiros, também os espectadores na sala de cinema. Afinal, o que se insinua como o trivial início de viagem corriqueira, gradativamente vai se desdobrando num percurso rumo a destino tragicômico. Na bagagem, a bomba não é artefato explosivo, mas também possui elevada capacidade de destruição. Trata-se de viagem aos traumas do passado. E alegoricamente um psiquiatra está na aeronave. O pouso não será acidental.
Las ratas
O colesterol das batatas fritas é a causa para a morte de mafioso. Num café à beira de rodovia, o cliente é atendido por garçonete. Ela o identifica e recorda momento doloroso. A cozinheira do lugar ouve o desabafo da colega. Num dos momentos mais hilariantes, surge a dúvida se o “veneno para rato”, com validade vencida, torna-se mais eficaz ou menos nocivo. Ex-presidiária, a cozinheira afirma que “na prisão era mais livre do que essa m... toda”. Com a chegada de adolescente, filho do cliente, Fanta sobre a mesa.
Banalidade no trânsito pode causar brutalidade. |
Pneu furado pode ser fatal. Numa rodovia, Audi tripulado por “bon vivant”. À frente, arrastando-se sobrecarregado, carro popular bem rodado. A estrada é o abismo entre dois mundos e realidades sociais antagônicas. O episódio é caricatura que transcende o vulgar litígio no trânsito. Trata-se de relato sobre o cotidiano voraz, sem inocência ou ingenuidade, tanto do endinheirado quanto do espoliado. A crueza acelera e o fim da viagem tem conotação que ridiculariza as pretensas diferenças. Todos rodam no mesmo chão.
Bombita
Numa teia burocrática com filas, guichês e funcionários treinados na “lógica binária” – sim e não –, armadilhas estão à espreita. As “minas” explodem no bolso do contribuinte. E podem estar armadas em banalidades como o simples estacionamento do veículo. O meio-fio não estava “marcado”, mas o carro foi guinchado. A vítima é o engenheiro interpretado pelo ator Ricardo Darín. Especialista em explosivos, ele desafia o sistema.
Ciúme desencadeia surpresas na festa de casamento. |
No penúltimo episódio, jovem de classe média alta atropela e mata gestante. O que sucede, em interpretações magistrais, é uma ciranda de venalidades, corrupção e propina.
Hasta que la muerte nos separe
Na festa de casamento, relato que encerra a obra, o ciúme gera uma comemoração surrealista. Aos convidados, ódio, rancor, ironia, cobiça, medo e ternura.
Carlos Cogoy
Imagens da web (1, 3) e Film1 (2)
Oi adoro seu blog, o leio a anos, onde sempre tenho a oferta de informação e cultura com qualidade.
ResponderExcluirsexta-feira soube de um evento de psiquatria que ocorrerá na cidade onde teremos mais uma vez a chance de apreciar esse filme. Dá uma olhada no link. abraços.
Chico Cruz.
http://www.amedpel.com.br/site/content/palestras/det.php?id=26
Olá Francisco, obrigado pela dica da palestra, não pude ir por estar fora da cidade. Colabore sempre com as opções culturais.
ResponderExcluirNa Associação Médica, dia 24 de abril, os psiquiatras Herberto Maia, Miguel Abib Hadad e Gustavo Coutinho da Rosa se referiram a este filme e à incrível coincidência antecipada pelo primeiro relato. O encontro levou o título "RELATOS SELVAGENS E ACIDENTE DA GERMANWINGS, entre a ficção e a realidade".
Vale a pena rever o filme e chocar-se com as semelhanças entre o episódio de Pasternak e do co-piloto alemão. Será que este viu o filme, ou o Relato Selvagem faz parte de sincronias do inconsciente da humanidade?