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segunda-feira, 21 de junho de 2010

Tudo pára quando eu vejo futebol

Como tem sido costume em cada Copa do Mundo após o tetracampeonato em 1994, o povo brasileiro detém todas suas atividades – comerciais, profissionais, educacionais, familiares, religiosas, turísticas – e o pensamento da nação pretende ser uma só torcida para obter o hexa.

Lojas, bancos, escolas, cinemas, museus, consultórios, universidades, tudo pára. Por duas horas se realiza aquele narcisismo absoluto - próprio de um ato amoroso - enaltecido pela música de Roberto Carlos: pára o bairro e a cidade, nessa hora tão feliz, e é tanto o amor que pára até o país (ouça a música).

Em Pelotas, a Fenadoce adiantou seu período para não perder visitantes, sinalizando sua função lucrativa e o perigo econômico da Copa. Há quatro anos, a Feira do Doce havia coincidido com os jogos na Alemanha, mas terminou impondo-se a loucura mundial: o povo preferia torcer em casa, não nos telões da Feira.

O primeiro jogo da seleção brasileira na África do Sul foi nesta terça (15), às 15h30min. Como se esperava, o comércio fechou e as ruas esvaziaram. Antigamente se dizia de algo arrasador, que era "de fechar o comércio", como aqueles bandidos arruaceiros de faroeste. Mas aqui nada havia de sensacional ou extraordinário; somente mais um jogo da seleção. A vítima desse perigo arrasador seria o próprio comércio.

Fui ver como as lojas anunciavam seu forçoso ócio, a negação do negócio. A mais expressiva foi uma livraria da Marechal Floriano (acima), que tapou sua porta com uma grande bandeira brasileira. A razão do fechamento comercial foi patriótica, algo assim como a defesa da pátria. Mas se no Brasil houvesse respeito pelo símbolo nacional, pela ordem e pelo progresso, o futebol não seria tão poderoso.

No Calçadão, a maioria das lojas fechou pelo resto do dia, enquanto a Renner e a Pompeia ficaram abertas e sem clientes. O museu mais importante de Pelotas, pertencente à UFPel, informou turno único das 8h às 14h (esq.), apesar de que o horário do Sistema Nacional de Museus inclui atendimento até em domingos.
O Banco do Brasil também planejou e informou abertamente seu horário especial, das 9h às 14h. Nos Correios, o atendimento foi anunciado até as 15h, e as agências fecharam.
Era um dia normal de semana, não havia motivo fúnebre, nem sequer de celebração alguma - somente havia que torcer.
Talvez respeitando o valor supremo da saúde, várias farmácias não fecharam e, cheias de funcionários verde-amarelos, colocaram televisores perto da calçada, para que os transeuntes também pudessem torcer. A maioria dos ambulantes da Floriano sumiu do mapa, restando dois com uma TV ligada. Nesta imagem, um grupo da farmácia (comércio estabelecido) vê o jogo num televisor, enquanto camelôs veem o futebol em outro (dir.). Tolerância e indiferença mútua, como ocorre no dia-a-dia.
Alguns locais e serviços reabriram após ver a partida dentro de seus locais de trabalho, como uma lotérica da Quinze de Novembro que afixou o cartaz que orientava possíveis (?) interessados: "reabriremos às 17:30" (esq.).
A livraria defronte (dir.) simplesmente fechou, deixando à vista o cartaz de seus horários habituais, agora descumpridos (ninguém o leria e por isso mesmo ninguém se veria desorientado).
A obsessão tem servido para fins diversos, como fugir do trabalho, faltar ao dentista, passear o cachorro (abaixo, a senhora com a camisa do Romário) e outras atividades igualmente solitárias. Cada um realiza seus fins pessoais, encoberto pelo egoísmo coletivo: aí está uma pequena definição de nossa tendência à corrupção. Um psicólogo diria: desaparição do superego construtivo, predomínio do prazer amoral.
Nem o Brasil tinha este delírio coletivo, nem se sabe de países que parem todas suas atividades produtivas para não perder um jogo. Mas também nunca houve um país pentacampeão desejando ser hexa... como se precisasse do infantil sonho de ser "o melhor do mundo".
Certo, é preferível enlouquecer pelo circo esportivo do que pela guerra contra o terrorismo (EUA), e por isso seguimos sendo o paraíso da festa, da gazeta e do oportunismo.
Devo acrescentar que neste texto acentuei o verbo "pára" - ao contrário do que manda o novo acordo ortográfico - justamente para evitar as confusões geradas pela falta do signo.
Fotos de F. A. Vidal

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. "Um psicólogo diria: desaparição do superego construtivo, predomínio do prazer amoral." Interessante o comentário...
    Ah, grata pela dica daquela música. Valeu!
    Bj, Tê!

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