Páginas deste blogue

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O poema que nasceu de uma enchente

O cronista Rubens Amador publicou há uma semana a crônica "Terna lembrança", na qual recorda um professor que teve lá por 1938, mais precisamente quando cursava o 5º ano primário. O aluno reencontrou o mestre de surpresa, 45 anos depois, mas foi somente agora, em 2013, que surgiu a "terna lembrança". Este artigo constitui-se também em documento histórico sobre o poeta Felicíssimo Silva, um dos jovens fundadores da antiga União Pelotense de Estudantes Secundaristas (hoje ele teria cerca de 100 anos).


Chuvas de 2009 inundaram a zona baixa da Dom Pedro II.
Como ainda muitos hão de lembrar, em julho de 1983 o sul do país sofreu uma grande enchente, inesquecível por sua devastação [v. reportagem do Jornal Nacional].

Pois foi nessa mesma época – precisamente, em 18 de julho daquele ano – que meu velho ex-mestre, Prof. Felicíssimo Silva, apareceu em meu estabelecimento comercial.

Na minha juventude, eu o conhecera no período do Admissão ao Ginásio, então aluno do Colégio Sagrado Coração de Jesus, cujo fardamento era, em tudo, semelhante ao dos escoteiros. Esse homem inteligente, anos mais tarde – já idoso – se tornou conhecido poeta parnasiano, e na imprensa local publicou inúmeros trabalhos, que eram muito apreciados.

Pois bem, naquele dia de 1983, se desenrolando aqueles trágicos e contrastantes acontecimentos climáticos, o Prof. Felicíssimo Silva se apresentou ante mim, todo molhado – pois chovia muito – modestamente vestido, barba por fazer, fisionomia ainda extremamente bondosa, característica de suas feições desde moço. Ao se abrigar, em minha firma, da forte chuva que caía, pude oferecer-lhe uma xícara de café quente, pois fazia muito frio também. Ele tiritava.

O professor foi um poeta autêntico. Vivia só de aulas particulares que ministrava, disse-me. Sabia fazer poesias, mas não sabia ganhar dinheiro com seu saber. Então me ofereceu sua última poesia – escrita havia pouco, segundo ele – relatando o fenômeno climático que sofríamos, de abundante enchente no sul e seca inclemente no nordeste. Sua poesia – uma maravilha – intitulava-se Dramático Contraste:

Por mais que o ser humano se agigante
Na busca infinda da pesquisa e da ciência,
Com seus engenhos chegue à lua e cruze os céus,
A cada dia, cada hora e cada instante,
O homem sente quanto é pouca a suficiência
Para, sem Deus, alcançar os planos seus.

O Plano Eterno – que governa a natureza –
Castiga a terra, nos enchendo de tristeza
E, como a fome e a doença, só, não baste,
Sofre o nordeste a estiagem permanente,
Suporta o sul os flagelos desta enchente,
Qual irônico e dramático contraste.

Até que voltem a seus leitos, rios e lagos,
Que se possam resgatar tantos estragos,
Animados da esperança – que não morre –
Que nos acudam as modernas invenções:
Helicópteros, o rádio e os aviões,
E todo um povo solidário, que socorre.
Felicíssimo Silva
Pelotas, 18 de julho de 1983

Recebi, agradecido, a poesia que meu ex-professor me oferecia, e pedi-lhe que a autografasse. Ali mesmo no balcão, de improviso, apanhou a caneta e, com a mão trêmula pelo frio, rapidamente escreveu:

Neste dia de borrasca, pleno inverno,
Que nos invade um sentimento terno,
Velha amizade de ex-aluno e professor,
Eu ofereço, com sincera modéstia,
Este poema a quem – criança um dia –
Foi bom aluno, o Rubens Amador.

De seu velho e sempre amigo (assinado): Felicíssimo Silva.

O Professor Felicíssimo faleceu no ano de 1987. E a crônica de hoje nasceu do meu reencontro com a poesia que me foi por ele oferecida, e que esteve dormindo entre meus guardados por exatos 30 anos. Dia destes deparei-me com ela entre meus papéis. Confesso que uma terna emoção de saudade me invadiu ao reencontrá-la.
Rubens Amador
Texto: Diário da Manhã, 28-7-13
Foto: Irineu Masiero

Um comentário:

Obrigado por comentar esta postagem.