Na segunda-feira 24 de fevereiro, na coluna LINHA DIRETA meu amigo Hélio Freitag fez uma referência aos bondes em Pelotas, associando tal lembrança à minha pessoa [v.
post Saudosismo dos anos 50].
Eu, por conotação, associei o citado veículo a uma das casas onde morei quando menino. Vou falar um pouco dos bondes aqui, mas comecemos com a casa, que ficava na Rua Marquês de Caxias (hoje, Santos Dumont), quase esquina Voluntários.
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Um belo dia, pedi para entrar naquela residência, identificando-me, e contando minha curiosidade em rever aquela moradia onde eu fora criança um dia. A senhora que me recebeu foi muito gentil e apreciou a minha vontade de rever o cenário de tantas “artes”.
Entrando na casa, a primeira coisa que fiz foi verificar como tinha ficado a cicatriz que eu fizera aos sete anos. Eram duas letras que escrevi com um ferro de soldar, quente, sulcando a porta de madeira do quarto da tia Dorina.
As letras eram DB, de Dorina Bastos, minha querida e inolvidável tia, que, um dia, mesmo sabendo que tinha sido eu que marcara a madeira da porta de seu quarto a fogo, ante a inscrição perguntou-me se havia sido eu que fizera aquilo. Saltei logo: “Não, não fui eu”.
Depois me arrependi de ter mentido, mas já era tarde. Titia não ficou brava comigo e disse que aquilo era coisa de algum espírito. Na época, pensei que ela estava acreditando no tal “espírito”. Mas aquilo ficou em mim.
Anos depois, eu já adulto, confessei-lhe. Ela disse-me que sabia quem era o autor, mas, como eu ia todos os dias buscar o pão na Padaria Industrial e ia no Armazém do seu Rosinha, defronte, ela me perdoou.
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A Padaria Industrial ocupava este enorme prédio,
na esquina da Santos Dumont com Major Cícero. |
Passando a mão na porta, no lugar, lá estavam, em discreto relevo, as letras DB que algum pintor procurara disfarçar, mas que só EU sabia o local ...e quem tinha feito aquele monograma.
Fui revisitando a casa, cheio de saudade de minha avó, que todos os dias fazia um bife na chapa para mim. Lembrei Mamãe. E depois cheguei ao pátio. Na soleira que dava para esse espaço, onde plantavam chuchus, e muitos cartuchos (copos-de-leite), tudo estava praticamente como era.
Mas naquela soleira havia outro segredo meu.
Com um martelo, eu havia pregado um parafuso enorme, que depois dobrei e bati até ele entrar na madeira da soleira, que era de lei. Pois lá estava ele enterrado ainda ali, gasto, havia dezenas de anos e só EU sabia daquele parafuso ali. Passei-lhe a mão, e naquele momento me senti a criança que fez aquela outra “arte”.
Senti-me emocionado. Feita a visita, agradeci a gentil senhora e retirei-me.
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Bondes e ônibus na rua Aquidaban com General Canabarro (Rio Grande, 1957) |
Agora entra o Bonde e minha convivência com eles.
Safety (segurança) era como se chamava também aos bondes. Fui contemporâneo deles.
Eles nunca faziam a volta. Quando chegavam ao fim da linha, o motorneiro puxava e prendia a alavanca que deslizava no fio de alta tensão, por uma roda, dando energia para os “elétricos”, como também se os chamava. Então o motorneiro liberava a da outra ponta, virando todos os assentos para o lado oposto.
Naquele tempo, não havia muito automóvel e o bonde era o grande veículo popular. Eu gostava de andar de bonde. Custava duzentos réis a passagem. Brancas, escritas em azul, com original e canhoto. A “tripulação” constava do motorneiro, o vendedor das passagens, e às vezes subia o fiscal (quepe diferenciado por linhas douradas), que via se tudo estava certo. Era então a Light and Power (Luz e Força) que explorava o serviço. A empresa ficava onde hoje é a CEEE. Inclusive lá está ainda o grande galpão onde os bondes eram recolhidos após determinada hora da noite.
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Abrigo de bondes na Praça Sete de Julho, entre a Prefeitura e o Mercado
(esquina em que um médico foi atropelado) |
No início dos anos quarenta, circulou um único bonde de cor marrom (os outros todos eram amarelos), que era de dois andares, tipo a maioria dos ônibus londrinos que ainda hoje lá circulam. Eu ia para as regatas nele, ano 39.
Dificilmente havia acidentes com os bondes. Mas mesmo assim, certa manhã, cedo, uma zorra (bonde-socorro, que carregava ferramentas para reparos), atropela e mata o competente e respeitado médico Dr. Paulo Campelo, entre a Prefeitura e o Banco do Brasil, então defronte.
A política (contra os americanos) foi que acabou com aquele serviço magnífico, que ao ser desapropriado, deixou muita gente rica com a compra e posterior venda daqueles trilhos, que eram as veias de nossa cidade. Vou contar-lhes um episódio que vivi com meu pai num daqueles “elétricos”.
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Bondes vinham pela Santa Tecla, parando na Voluntários. |
Eu tinha meus 8 anos de idade. Costumava jogar futebol defronte ao Armazém Furão, logo quem entra na Cerquinha, passando a Professor Araújo – ou brincava com a turma ali da Paysandú (hoje Barão de Santa Tecla).
Alguns mais ousados da turma costumavam se pendurar atrás dos bondes quando estes paravam na Santa Tecla com Voluntários e iam umas duas ou três quadras, “gozando”, dependurados. Só faziam isso os moleques de rua, mas nós os estávamos copiando.
Até que um dia resolvi também me pendurar num daqueles bondes por duas ou três quadras, e depois voltava a pé com outro amigo, para recomeçar tudo de novo. Passava as tardes fazendo isso, coisa que só moleques de rua costumavam fazer com grande destreza. Pois um amigo de Papai contou-lhe o que eu andava fazendo: me pendurando nos bondes!
O meu pai ficou bravo comigo e me disse que eu nunca mais fizesse aquilo porque, além de feio, era muito perigoso. Eu poderia me machucar – e, dramático, acrescentou –
e até morrer!
Claro que prometi que não subiria mais. E, tal como hoje – em relação à droga – os perversos fazem com os mais fracos, os mais velhos me diziam: “Tá com medo! Tá com medo”. Em verdade eu temia era o meu pai, mas tanto eles me gozaram que resolvi: dei um pulo, me agarrei na traseira do primeiro bonde que parou na Paysandú com Voluntários, desobedecendo a ordem que me tinha sido dada.
Mal o bonde arranca e pega velocidade – me lembro das pedras do calçamento correndo ante meus olhos – ouço alguém batendo nos vidros, por dentro, bem forte. Era o meu pai com um jornal na mão gritando:
– Só desce quando o bonde parar!
Assim fiz. E como era comum naquele tempo, meu pai me pegou por uma orelha e me conduziu por duas quadras até nossa casa, eu com a cabeça o mais alto possível, de lado, para aliviar aquele corretivo.
Não levei algumas palmadas. Mamãe impediu. Ainda sinto aquele “puxão de orelhas” e o compreendo. Só sei que nunca mais me pendurei em nenhum bonde para dar uma “gozadinha” por duas ou três quadras, copiando os moleques de então.
Mas confesso-lhes que gostaria de fazer tudo de novo, só para ter ao meu lado todas aquelas figuras que eu amei e que, junto com os anos que já vivi, foram como que se apagando, só voltando de vez em quando, como agora, com a feliz lembrança do Hélio Freitag.
Rubens Amador