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sábado, 3 de outubro de 2015

O primeiro negro que jogou no Pelotas

Dribla
Dupla/corre/bola
Sorri correndo
Joga ...

Nego
Fiz do tempo o que quis ... mas nego
Os negros fizeram história/memória/capítulo
A contagem dita ...
Conto do conflito
Forma clara para/por todos os homens

E passamos por cima dos fatos
Atos deles e nossos ... humanos claro ... claros
Um passado racista nesses jogos marcados.
Sonha correndo ... joga
Corre jogando ... chora

Capítulos da história

O futebol mexe com as pessoas. Suas regras e disputas.
Antigamente dizia-se gôlo no Rio Grande do Sul e torcia-se pelo jogo. Hoje torcemos pelo ídolo/jogador. Um calor fervoroso, interno, quase religioso. Associação deste esporte/indústria. O esporte salva/integra. Mas e o dinheiro, não !?.
Nathanael Anasttacio

Antologia de 2001.
O escritor Lourenço Cazarré começou a desenvolver, por volta de 1985, um conto sobre o futebol pelotense, a partir de um episódio que seu avô dizia ter visto de perto nos anos 30. O texto viu a luz em 1989, no livro "Noturnos do amor e da morte", com o título de "Meia encarnada, dura de sangue"(v. perfil do escritor e outros dados biográficos de Cazarré).

Naqueles tempos de heroísmo e amadorismo, um craque teve que ser comprado ao inimigo. Hoje o desamor à camiseta é coisa trivial; naquela época, não era fácil ser "profissional" (leia crítica literária de Iuri Müller para o Sul21 e comentário no Blogrêmio).

A TV Globo adaptou roteiro à base desta história (série Brava Gente, dez.2000), com direção do gaúcho Jorge Furtado para a produtora Casa de Cinema de Porto Alegre (v. detalhes técnicos):
No interior do Rio Grande do Sul, em 1953, o craque Bonifácio (Sérgio Menezes) vive um dilema. Jogador de um time integrado por negros e pobres, ele é convidado a fazer parte da equipe dos brancos e ricos. Seria a chance de oferecer uma vida melhor à namorada, a doméstica Elisa (Camila Pitanga).
O conto foi incluído numa antologia de 2001 com contos gaúchos sobre futebol  (v. análise da Trivela sobre o livro, organizado por Ruy Carlos Ostermann). Em 2003 foi escolhido como um dos 35 Melhores Contos do Rio Grande do Sul e em 2005 Cyro de Mattos o incluiu nos "Contos Brasileiros de Futebol" . Na transcrição abaixo, foram omitidos os primeiros parágrafos.

Meia encarnada, dura de sangue
Lourenço Cazarré

Então o meu avô contou a história do crioulo. Ele tinha várias histórias de futebol porque ele mesmo havia sido um jogador, um ponta irritante, daqueles pequenos que são como flechas e que, por não terem nem altura nem força, se obrigam a ser mais velozes e mais matreiros e mais gambeteiros e mais debochados, para irritar os laterais. O velho dizia que naquele seu tempo, sim, aquilo era um esporte para homens, porque os juízes só marcavam falta se o agredido sangrasse, e só expulsavam o agressor quando o outro ficava estirado sobre o barro, desmaiado. E falava de como eles se cuspiam e davam cotoveladas e socos e como gostavam de esfregar as garradeiras na cara dos outros e demais barbaridades.

Mas voltemos ao rio, deixemos as vertentes. O tal crioulo esse foi uma espécie de primeiro profissional da cidade. Não sei quando, mas creio que pelo meio ou pelo final da década de trinta, porque o velho contou que por esse tempo, esse sujo tempo em que os atletas ganhavam dinheiro pela sua arte, já estava fora dos campos, ele já estava fora dos campos, com os joelhos arrebentados.

Pois o crioulo jogava pelo Grêmio Esportivo Brasil, o time dos negros e mulatos. O campo deles ficava nos banhados da Estação Ferroviária. O crioulo, aos dezenove-vinte anos, era o maior driblador e fazedor de gols da época. Nem alto nem baixo, era magro como a peste e leve como a brisa e dançarino como as borboletas. E frio. E jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Calculista, ele não só queria fazer o golo, como queria também que seu marcador ficasse por terra, e gostava de ver o goleiro esmurrar a grama. Jogava rindo. Conheces o tipo, não é? Não era um sorriso, era um arremedo de sorriso, uma máscara ridente que nada tinha a ver com o que lhe ia pelas entranhas. Ele ria daquele jeito só para enfurecer os adversários, para fazê-los perder a cabeça e começarem a querer matá-lo.

Nada pior pro time da gente do que jogadores de cabeça quente, a gente grita que quer sangue – mata este filho da puta! – e ele parte pro pau, mas aí o jogador frio sempre dá aquele pulinho pro lado, aquele toque sutil, e ganha a parada.

Era assim dentro de campo, implacável. Fora, era outra coisa. Um rapaz gentil, tímido, de fala mansa, silencioso, cerimonioso. Saía do campo de cabeça baixa, como que pedindo desculpas por jogar tanta bola.

Reedição de 2005.
Trabalhava num matadouro. Mas não sei te dizer qual. Ficava pras bandas do porto. Ele também morava por lá, naquela ruazinha que corre paralela ao canal e que devia ser naquela época ainda mais escura e suja. Ele e a velha sua mãe, viúva. Durante a semana, gastava o dia dentro daqueles galpões sombrios – iluminados apenas pelo cintilo fugaz dos facões afiados – resvalando pelo chão ensanguentado.

Era tão hábil com a faca quanto com a bola, dizia meu avô. O negócio dele era a desossa. Desmanchava um boi em minutos. E não deixava um só fiapo de carne nos ossos. Com a mesma precisão que escapava dos coices do adversário, recuando o corpo apenas os milímetros necessários, ele destrinchava os animais.

Aos domingos, brilhava nos campos.

Depois de perder quatro ou cinco jogos, de enfiada, os dirigentes do Pelotas começaram a se perguntar se não estariam fazendo uma grande asneira em não aceitar jogadores negros ou mulatos. E o meu avô dizia: "Está certo que esses negros são uns mandriões, e conheci não mais de sete que gostavam de trabalhar, mas o certo é que nas safadezas, coisas como serenatas e jogos de bola, eles são bastante bons". Então um inglês, que palpitava muito nas reuniões de diretoria, tanto encheu que acabaram aceitando conversar com o crioulo. Um dos diretores do clube, da família Almeida Guimarães, um cara que tinha tantos contos de réis quanto milhos numa espiga, disse mais: que cederia ao tal crioulo uma casa velha que tinha lá pros lados da Cerquinha. Se aceitasse, podia morar lá de graça, enquanto servisse ao time. Então mandaram alguém falar com o rapaz.

Ele morava num rancho de paredes vacilantes e teto de palha. Muitas vezes no verão, nas cheias do rio, tinha que botar os trastes nas costas e sair para a casa de uns parentes, que moravam nas Terras Altas. Baixava a enchente, lá vinham ele e a velha, de volta. Mas não foi isso que decidiu.

Ele demorou muito para aceitar. Não que estivesse negaceando, como fazem os jogadores de agora, para conseguir contratos melhores. Gastou dois ou três meses pensando os prós e os contras, porque sabia que a partir do momento em que concordasse não seria apenas o crioulo: seria o crioulo vendido. E o meu avô dizia: a gente de hoje não tem ideia do que se passou pelo coração do mulato, coitado, que nem mais dormia pensando no que devia fazer. Naquele tempo o valor dos homens era medido não pelo seu dinheiro mas pela capacidade ou incapacidade de manter a palavra empenhada.

Por uma mulher, decidiu-se.

Camila Pitanga e Sérgio Menezes no curta da Globo (2000).
Esta negrinha, que trabalhava numa casa de família, no centro da cidade, pesou mais do que a honra ou o orgulho que ele pudesse ter.

Se ficasse no seu time do coração, teria apenas os aplausos e os abraços de negros e mulatos tão pobres quanto ele, ou mais, num desses melancólicos finais de tarde de domingo, no inverno, que trazem consigo não só tristeza e neblina, mas também a desesperada perspectiva de mais uma semana de trabalho.

Nas incontáveis noites indormidas, sonhou com a casa que já vira, num passeio, numa manhã de domingo, sentindo no braço esquerdo dobrado a pressão mais forte dos dedos da namorada. Sonhou com a casa e se viu dentro dela, e fora, na soleira, dedilhando o cavaquinho que ainda não possuía, numa noite de lua. Chegou a escutar o vagido de um anjinho que ainda não nascera. Sonhou, com o misto de orgulho e desvanecimento de proprietário, que passava as trancas nas portas e que se deitava ao lado da mulher, e que adormecia, como um homem comum.

Aceitou. Porque se não aceitasse teria de continuar morando naquele casebre, teria de ficar com sua mulher no único quarto, e deixar a sala, a sala cheia de goteiras, para sua velha.

Disse sim ao terceiro emissário. Faltava apenas uma semana para o jogo.

O tal inglês encarregou-se de espalhar o fato aos jornalistas e estes não pouparam nem tinta nem papel para execrar o mulato, para colocá-lo lado a lado com os flagelos da humanidade, como Átila, Solano López e todos aqueles ditadores argentinos e mais os caudilhos uruguaios.

Não dormiu mais em paz. Não por causa daqueles jornalistas, pois os jornais não chegavam aos casebres daquele canto da cidade, mas por causa do risinho e das piadas e das ofensas pesadas dos colegas de matadouro, mulatos e negros como ele. Este era o desprezo que lhe interessava, que lhe dizia respeito.

E ele perdeu a confiança em si mesmo, disse meu avô. Aquela mão que jamais havia tremido agora jogava a faca contra o osso, ele que nunca afiara o facão sem ter desmanchado quatro animais precisava afiá-lo de meia em meia hora. Sentia-se velho, acabado, triste e solitário.

Tinha o carinho da mãe e os afagos da namorada. Mas a vergonha era tanta, e doía tanto, que ele não podia compartilhá-la com ninguém. O jogo seria no domingo.

Entrada ao Estádio do Pelotas pela Avenida Bento Gonçalves, anos 50/60
O acidente deu-se no final da manhã de sábado, quando estavam por fechar. Os outros já tinham saído, mal tocara o sino, mas ele ainda estava lá, só, trabalhando. Não poderia acompanhá-los até o bolicho para a cachaça de todo sábado, porque sabia que a partir daquele dia não teria mais lugar no balcão de mármore. Não ouviria nem contaria piadas. Nem cantaria aquelas marchinhas. Não teria mais direito de pedir emprestado aquele cavaquinho ao dono do boteco. Estava acabado para ele, era um vendido.

Creio que foi uma lágrima, dizia o meu velho, creio que foi uma lágrima que lhe sujou o olho, que causou o acidente. Ele não mais dominava a faca como antes. No momento em que a lágrima lhe toldou a visão, ele perdeu o controle.

Ele estava desossando a carcaça no chão, como gostava de fazer, sobre a laje ensanguentada. Usava não só as mãos, mas também os pés descalços, para firmar a ossamenta.

Então a faca escorregou e ele não sentiu mais nada que além de uma pequena ardência, quase uma cócega, na parte de dentro do pé esquerdo. A faca escapara e correra ao longo de todo seu pé, do dedão ao calcanhar, abrindo um talho fundo, de vinte centímetros de comprimento. No primeiro instante, achou que tinha sido pouca coisa. Então o sangue começou a manar, um sangue denso, grosso, vermelho.

Estava sozinho no pavilhão. Escutava apenas o roçar da vassoura do negro velho que fazia a limpeza do pátio. Correu ao seu armário e pegou as botinas. Felizmente, tinha vindo com elas. Quero dizer, viera com elas porque ao levantar naquela manhã não se lembrara se era um homem marcado e que não poderia ir para a cachaçada. Calçou-se. Rapidamente acabou o trabalho, sem se preocupar com o fio da faca, sem ver as pelancas que grudavam aos ossos. Precisava ir embora logo. Acabou. No vestiário, ao tirar o avental, notou que o sangue já escapava pelo peito do pé, entre os cadarços. Voltou ao pavilhão, tirou o sapato e verteu o sangue sobre as lajes. Olhou o ferimento, perdia sangue, mas menos. Lembrou-se de fazer um torniquete, pegou uma guasca. Tinha prática naquilo, não passava mês sem que alguém se cortasse feio. Ao sair, levava um pedaço de tripa seca. Já sabia mais ou menos o que teria de fazer. Passou pelo gerente. Cumprimentou, mas não foi cumprimentado. E, na calçada, piscou os olhos para a luminosidade baça do dia e saudou o carroceiro, que levaria carne ao Mercado, mas não teve resposta. Aliás, o negro, acintosamente, virou a cara.

Foi direto pra casa. Almoçou. Deitou-se, na sala, não tirou os sapatos e manteve o pé erguido sobre a guarda da cama. A velha veio, estava com a sombrinha no braço.

– Por que estás deste jeito, com as pernas pra cima, se recém almoçaste?

– Pra descansar os músculos, mãe, amanhã tem jogo.

– É – disse a velha – mas isso deve fazer mal pro estômago. Tem tempo, faz isso mais tarde.

– A senhora vai sair?

– Vou, vou benzer o filhinho da Matilde, o guri anda com a barriga floxa há uma semana.

E a velha saiu. Ele calculou que teria meia hora, uma no máximo. Pegou a bilha e encheu a bacia de latão. Foi pro pátio, pra debaixo da vergamoteira florida.

Lavou o pé. O ferimento era fundo mas agora não já sangrava. Limpou a bota, voltou pra sala. Procurou o caixote de marmelada onde a velha guardava as coisas de costura. Achou uma agulha que servia, de furo largo. De sob o colchão pegou sua faquinha afiada. Da tripa de ovelha, tirou um tento, estreito que nem fio de barbante. Meio metro, mais ou menos. Daria. Então costurou o pé. Do dedão ao calcanhar. Uma costura bem apertada. Calçou as botas.

Lembrou-se então que tinha deixado a bacia suja debaixo da árvore. Correu até lá, justamente a tempo de jogar a água em cima do canteiro porque a velha já estava na cozinha. Passou a mão para limpar uns poucos pingos vermelhos.

– Ué, já tomaste banho, tão cedo?

– Não, mãe, apenas lavei as mãos, o rosto.

– Tu não tá meio esquisito, hoje, guri?

– É, mãe, preocupado com o jogo amanhã.

– É o que eu sempre digo: não tem bicho mais burro do que o homem, durante a semana passa se gastando lá no serviço e no fim de semana, que Deus fez pra descansar, se mete na gandaia, nas farras com as sem-vergonhas, ou na cachaça e agora, pra piorar, tem esse tal jogo de bola. Mas burras são as mulheres, porque nunca deixaram de parir outros homens.

Deitou-se e adormeceu. Um sono pesado, inçado de pesadelos. Sonhou que estava em campo, mas que não conseguia correr porque não tinha mais o pé esquerdo. E pela volta, por trás da cerca, os homens riam e debochavam e gritavam: aí, perneta vendido, agora mesmo é que quero te ver fazer um golo.

Foi acordado pela velha, à tardinha.

– Tá na hora do banho.

– Não vou tomar banho hoje, mãe.

– Ué, por quê? Deste agora pra fedorento, relaxado? E tua noiva, o que vai dizer?

– Não vou até lá, mãe. Estou meio cansado hoje.

– Não é nada disso, guri. Vai ver que tu brigou com ela! Alguma coisa tu tá tentando esconder, mas eu vou descobrir, porque a mim tu não enganas, te conheço desde que não tinhas dentes e fazia cocô preto. Não te esquece que eu te fiz dentro da minha barriga. Sei tudo de ti, até mais do que tu mesmo. Agora anda tomar banho antes que eu te meta a vara de marmelo.

Não dormiu naquela noite. Só fechou os olhos quando viu, por entre os postigos, a chegada do sol, que nasce lá pra cima, na lomba da Quinze.

Almoçou cedo. E saiu para o estádio. Teve sorte porque um carroceiro lhe ofereceu carona. Um mulato que não parou de falar todo o trajeto. Pedia-lhe golos, muitos golos, porque o negócio era arrebentar com aqueles almofadinhas lá da Avenida. Foi em silêncio, calado, porque não podia dizer-lhe que faria golos, sim, muitos golos, mas que estes golos seriam para o time dos almofadinhas da Avenida.

Pediu ao carroceiro que o deixasse a uma quadra do campo. O homem insistiu, queria ter o prazer de levá-lo até o portão. Não! Que parasse. Queria passar antes na casa da namorada, mentiu.

Desceu. Foi a pé. Meio às tontas procurou o portão de entrada dos sócios onde, antes, jamais negro ou mulato havia pisado, a não ser os faxineiros, e, embaraçado, teve que dar uma longa explicação ao porteiro, um sujeito de bigodes revirados. Estava nisso quando foi abraçado por um homem alto, com jeito de alemão, que o arrastou até os vestiários e gritou para os homens seminus que ali estava o novo companheiro, o grande craque. Procurou um canto de banco, onde estava mais escuro, para tirar a roupa. Tinha vergonha em mostrar sua nudez marrom a todos aqueles brancos. O mesmo sujeito alto voltou até ele, e ele demorou a entender o que o outro dizia: queria saber o número do seu pé para lhe dar chuteiras novas. Agradeceu. Disse que jogaria com as suas, velhas, desbeiçadas. O homem de olhos azuis riu, disse que sim, mas pelo menos deveria lustrá-las. E chamou um negrinho e mandou que ele engraxasse aquelas chuteiras acalcanhadas.

Bra-Pel em 2013: não há a segmentação e o preconceito de antigamente.
Como se estivesse num outro mundo, distante, ele escutava o zunzum do vestiário, marcado aqui e ali por risadas nervosas. Não olhava para lado nenhum. Enfiou a camiseta azul e amarela que se acostumara, desde menino, a repudiar. Então o engraxate ergueu para ele aqueles grandes olhos cheios de uma luz negra, e ele entendeu que o menino tinha visto o enorme talho costurado com tripa. Colocou o pé direito sobre o esquerdo enquanto procurava as meias. Calçou-se. Continuou cabisbaixo enquanto o guri lhe calçava as chuteiras.

– Vai doer muito, seu moço – sussurrou o pequeno.

– Cala a boca, moleque, cuida do teu trabalho!

O menino continuou a polir, com os olhos voltados para o jogador.

– Está pronto, seu moço.

Então ele viu que o garoto se abaixou sobre a caixa e beijou-lhe o bico reluzente da chuteira e disse, baixinho:

– Não importa o lado que o senhor vai jogar, seu moço. O que interessa é que o senhor é que vai fazer golos.

Então houve um segundo, um lampejo, em que apenas pelos olhos eles se entenderam: eram negros e miseráveis e sabiam que era assim que caminhavam, às avessas, contra o vento e o frio, numa interminável procissão de corpos vergados e rostos escuros, um atrás do outro, campo fora, tendo como destino lugar nenhum.

Que mais posso lhe dizer, meu amigo? – perguntava o meu avô neste ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com dois olhos escondidos debaixo das inchações e um talho no supercílio. Apanhou dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu pra sair, como fazem estes frescos de hoje em dia. Foi até o apito final. E esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéus neles, bola pelo meio das pernas então era mato. E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três golos, sabe o que é isso?

Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Então saiu, sem que ninguém, além do menino, tivesse descoberto seu segredo.

E, como não queria que mais ninguém soubesse, especialmente sua mãe, foi até a casa onde trabalhava sua namorada e por sobre o muro, no fundo do pátio, entregou-lhe a meia encarnada, dura de sangue seco, como uma espécie de dote, penhor, hipoteca.

Texto completo: Impedimento (20-11-07)
Imagens: Sul21 (1), Americanas (2), Alex Sernambi (3), PretéritaUrbe (4), Futebol Daqui (5)

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