quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Joquim, segundo Vítor

A canção "Joquim" [djôukin] foi composta por Vítor Ramil para o disco "Tango" (1987), à base da americana "Joey" (1976), com letra de Jacques Levy e música de Bob Dylan (veja a letra original, uma versão em inglês e uma adaptação cantada em italiano). Na época, esta música foi polêmica, por defender o ponto de vista de um bandido nova-iorquino, Joey Gallo (1929-1972).

O gaúcho Joaquim Pedro Salgado Filho, Ministro da Aeronáutica em 1943,
homologou o avião "Cidade de Pelotas", construído por Joaquim Fonseca.
Na transcriação (reconstrução criativa adaptada a outra situação), Ramil usou a mesma estrutura musical para exaltar e mitificar o pelotense Joaquim da Costa Fonseca Filho (1909-1968), não precisamente um criminoso, nem sequer um rebelde político.

O Joaquim histórico foi um mecânico e aviador autodidata, científico adiantado a seu tempo, e hoje esquecido e desconhecido da maioria.

Escudado nesse desconhecimento real e injusto, o texto de "Joquim" idealiza o inventor (a começar pelo apelido inventado do herói e de sua cidade), numa verdadeira ficção biográfica. A imagem de revolucionário político, injustiçado por ditaduras, é um mito heroico criado pelo compositor, numa fusão de figuras como Graciliano Ramos e outros intelectuais perseguidos. O paralelismo entre Joey/New York e Joquim/Satolep sugere com sutileza, também, que as duas cidades possam ser sentidas como espaços imaginários de traços frios e escuros (metrópole = cidade-mãe).

As várias licenças poéticas e dados não reais, contidos na letra, são explicados por Sérgio Luiz Peres de Peres na dissertação de mestrado Uma História de Invenções: memória, narrativa e biografia em Joaquim Fonseca  (UFPel, 2009). Do mesmo autor, há um resumo biográfico (real) no artigo O Faz-Tudo Voador.

Vítor Ramil apresentou esta música no "Tangos e Tragédias", personificando o Barão de Satolep, outra de suas criações à base de mitos pelotenses. Abaixo da letra completa, confira a experiência artística de outro pesquisador em busca da verdade do Joaquim engenheiro e inventor.

Satolep, noite, no meio de uma guerra civil, O luar na janela não deixava a baronesa dormir, A voz da voz de Caruso ecoava no teatro vazio: Aqui nessa hora é que ele nasceu, segundo o que contaram pra mim.
Joquim era o mais novo, antes dele havia seis irmãos. Cresceu o filho bizarro com o bizarro dom da invenção. Louco, Joquim louco, o louco do chapéu azul. Todos falavam e todos sabiam quando o cara aprontava mais uma.
Joquim, Joquim  Nau da loucura no mar das ideias 
Joquim, Joquim  Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
 Muito cedo ele foi expulso de alguns colégios e jurou: “Nessa lama eu não me afundo mais”. Reformou uma pequena oficina com a grana que ganhara vendendo velhas invenções. Levou pra lá seus livros, seus projetos, sua cama e muitas roupas de lã. Sempre com frio, fazia de tudo pra matar esse inimigo invisível.
A vida ia veloz nessa casa no fim do fundo da América do Sul: O gênio e suas máquinas incríveis, que nem mesmo Júlio Verne sonhou, Os olhos do jovem profeta vendo coisas que só ontem fui ver.
Uma eterna inquietude e virtuosa revolta conduziam o libertário.
Dezembro de 1937, uma noite antes de sair, chamou a mulher e os filhos e disse: “Se eu sumir procurem logo por mim”. E não sei bem onde foi; só sei que teria gritado a uma pequena multidão: “Ao porco tirano e sua lei hedionda nosso cuspe e o nosso desprezo!”
Joquim, Joquim  Nau da loucura no mar das ideias 
Joquim, Joquim  Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
 No meio da madrugada, sozinho, ele foi preso por homens estranhos. Embarcaram num navio escuro e de manhã foram pra a capital. Uns dias mais tarde, cansado e com frio, Joquim queria saber onde estava. E num ar de cigarros, de uns lábios de cobra, ele ouviu: “Estás onde vais morrer”.
Jogado numa cela obscura, entre o começo do inferno e o fim do céu, Foi ali que, depois de muitas histórias, a mulher enfim o encontrou. E ele ainda ficou ali por mais dois anos, sempre um homem livre apesar da escravidão, As grades, o frio, mas novos projetos, entre eles um avião.
O mundo ardia na guerra quando Joquim louco saiu da prisão. Os guardas queimaram os projetos e os livros, e ele apenas riu, e se foi. Em Satolep alternou o trabalho com longas horas sob o sol, Num quarto de vidro, no terraço da casa, lendo Artaud, Rimbaud, Breton.
Joquim, Joquim  Nau da loucura no mar das ideias 
Joquim, Joquim  Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
 No início dos anos 50, ele sobrevoava o Laranjal Num avião construído apenas das lembranças do que escrevera na prisão. E decidido a fazer outros, outros e outros, Joquim foi ao Rio de Janeiro, Aos órgãos certos - os competentes de porra nenhuma -, tirar uma licença.
O sujeito lá responsável por essas coisas lhe disse: “Está tudo certo, tudo muito bem. O avião é surpreendente, já vi, mas a licença não depende só de mim”. E a coisa assim ficou por vários meses, o grande tolo lambendo o mofo das gravatas Na luz esquecida das salas de espera, o louco e seu chapéu.
Um dia alguém lhe mandou um bilhete decisivo e, claro, não assinou embaixo. “Desiste”, estava escrito, “muitos outros já tentaram e deram com os burros n´água. É muito dinheiro, muita pressão, nem Deus conseguiria”. E o louco cansado, o gênio humilhado voou de volta pra casa.
Joquim, Joquim  Nau da loucura no mar das ideias 
Joquim, Joquim  Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
 No final de longa crise depressiva, raspou completamente a cabeça E voltou à velha forma com a força triplicada por tudo o que passou. Louco, Joquim louco, o louco do chapéu azul, Todos falavam e todos sabiam que o cara não se entregava.
Deflagrou uma furiosa campanha de denúncias e protestos contra os poderosos. Jogou livros e panfletos do avião, foi implacável em discursos notáveis. Uma noite incendiaram sua casa e lhe deram quatro tiros. Do meio da rua ele viu as balas chegando lentamente.
Os assassinos fugiram num carro que, como eles, nunca se encontrou. Joquim cambaleou ferido, alguns instantes, e acabou caído no meio-fio. Ao amigo que veio ajudá-lo, falou: “Me dê apenas mais um tiro, por favor. Olha pra mim, não há nada mais triste que um homem morrendo de frio”.
Luciano Boeira é um professor que ensina Física cantando, em Porto Alegre, e compõe músicas cujas letras são resumos de capítulos da matéria. Ele pesquisou com seus alunos sobre a vida real de Joaquim Fonseca e publicou artigos e um resumo sobre o que descobriu (veja as postagens no seu blogue Cantando a Física e no seu canal YouTube). Imagem: Galeria de Joquim no Flickr

POST DATA 17-3-13
Veja uma biografia de Joaquim da Costa Fonseca Filho.

3 comentários:

Khankoyott disse...

Obrigado pelos esclarecimentos com fonte e ilustração.
Parabéns!

Anônimo disse...

Super

Anônimo disse...

Super inteligente, interessante, genial