sábado, 7 de julho de 2012

Chove na Princesa

Engana-se quem pensa que, numa cidade chuvosa, a água simplesmente cai na vertical e encharca o terreno. Além da pluviometria científica, há ampla e profunda subjetividade neste fenômeno da natureza.

Com o vento, as gotas se espalham e molham na horizontal tudo o que encontram. Mesmo caindo pura, a água exige às pessoas enorme trabalho de limpeza, secagem e conservação de paredes e janelas. A chuva complica a vida dos outros.

Quando vem como garoa imperceptível, a chuva fica sendo um pranto do céu ou um choro das almas que sofrem. Se chega furiosa, é um castigo que aprisiona os viventes, seja no interior das casas ou ao relento das esquinas inundadas. A chuva é emocionante e exasperante.

Como habitantes de zona chuvosa, os pelotenses têm vasta experiência com a invasão aquática. Nossa água até se deixa navegar; mas ela penetra os tetos das casas e as roupas nos armários, como fantasmas possuindo corpos. Por consequência, também invade nossos pensamentos - que não podem ser enxugados de tristezas e angústias inconscientes - e nossas percepções da realidade, que vivem embaçadas de gotículas homeopáticas que nos tapam a visão da paisagem.

A umidade é a única praga que foi expulsa do deserto egípcio (pior que mosquitos, gafanhotos, chuva de cinzas e o mundo em trevas) e ficou ligada a certos lugares, os focos de umidade. Com ou sem essa maldição, Pelotas leva o nome de uma embarcação cujo fim não é tanto cruzar distâncias maiores, mas impedir o afundamento de quem navega.

A véspera do aniversário de Pelotas teve forte chuva, mas ela se retirou à noite e deixou o ar gelado para as celebrações. Hoje (7) o sol apareceu, mas de casaco grosso. Após a chuva de ontem, o poeta decifrou a umidade pelotense em poucas linhas.

Princesa
Nos dias sombrios,
a umidade se espalha nos muros
e nas casas velhas da Princesa.
 

Em alguns pontos chora;
vê-se suas lágrimas escorrerem parede abaixo.
 

No tracejar da umidade,
vislumbro antigas ruas cujo som,
apurando os ouvidos,
pode ser percebido.
 

Lá fora, agora, chove.
Nos cantos sombrios a cartografia de sempre,
meio à selva de liquens.
 

O manto da Princesa é feito de liquens.
E de caramujos fosforescentes.
Caramujos que caminham;
por isso o andar da Princesa é tão lento.
Manoel Soares Magalhães
Foto: F. A. Vidal [Deodoro esq. Voluntários]
Texto poema: Cultive Ler

4 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns ao editor pela perspicácia. Dois belos - e críticos textos acerca de nossa Princesa. O último, em especial, me encantoiu muito. O poeta me lembra Neruda nesses versos.

Joaquim Francisco, pelotense residindo em Jaguarão

P.R.Baptista disse...

Uma Pelotas que procura encontrar seu espaço em meio à brutalidade dos que a tratam como conquistadores, com desprezo,como se pudessem esconder seus encantos ou colocá-los a seu serviço, como se fosse uma prostituta que tivesse um preço, um preço vil....

Francisco Antônio Vidal disse...

É interessante a conexão com Neruda, pois ele nasceu no sul do Chile, onde chove muito e faz frio. Nosso poeta pelotense anda inspirando-se no chileno, e reformulou o Livro das Perguntas. Veja aqui:
http://www.cultive-ler.com/2012/06/as-perguntas-que-neruda-nao-fez-4.html

Especialmente a relação com estes versos pode ser feita com o poema de Nerruda "Sólo la muerte". Veja aqui uma análise crítica de Alfredro Lefebvre:
http://www.neruda.uchile.cl/critica/lefevre.html

Anônimo disse...

Muito interessante o trabalho de Manoel, escrevendo as perguntas que . Neruda deixou de fazer. Uma brincadeira séria, que mostra a versatilidade do escritor pelotense.

Núbia