segunda-feira, 9 de março de 2009

Satolep - o livro

Satolep foi lançado no início do inverno de 2008, época concordante com inundações, perdas, isolamentos e confusões, como as que o livro relata. A sessão de autógrafos foi na fria noite de 13 de junho, na Casa 2, sede da Secretaria de Cultura... ao ar livre. Vítor Ramil (dir.) conta que esteve dez anos escrevendo e reescrevendo este livro, enquanto fazia sua psicanálise em Porto Alegre: dois processos freudianos que se alimentaram um ao outro.

O relato tem um ponto de partida clássico, o retorno às origens após uma longa ausência. Além desse detalhe biográfico, Ramil coloca outros, como a figura admirável do irmão mais velho e o fato de viver rodeado de artistas. Mas o principal é que ele fala de sua cidade natal - o lugar físico e histórico - e de Satolep, a sua Pelotas inventada, lembrando trocadilhos da infância, quando ele e os amigos brincavam de inverter a ordem das palavras. Vítor, por exemplo, se chamava Rotiv Oguh Sevla Limar. Anos depois, criaria o Barão de Satolep, personagem tão intenso que teve que ser deixado de lado para que Vítor pudesse aparecer e falar.

Costumava ver minha alma quando criança, ao bafejar nas vidraças de junho para nelas escrever meu nome. Minha alma carregava meu nome. [...] Viajando pelo mundo, eu não a vira.

Ao redor do pretexto inicial – o retorno ao lugar frio e úmido – cruzam-se tantas linhas (mentais, históricas, espaciais) que a leitura se faz emocionante e necessária. De saída se forma o enredo, que se enredará mais e mais, circularmente, deixando o leitor tonto nas vertigens do protagonista.

Eu tinha a sensação de já estar há muito tempo em Satolep, mas acabara de chegar. Era a minha segunda noite na cidade, a primeira em minha casa. O céu estava límpido, estrelado. A cerração de ontem parecia recordação de outro inverno.

Como não identificar-se com o relato, se os lugares são os mesmos que conhecemos: Café Aquários, Praça Coronel Pedro Osório, Sete de Abril, o Gasômetro, Santa Casa, Estação Ferroviária... Como não interessar-nos, se os personagens que se cruzam conosco são nada menos que João Simões, Lobo da Costa, Francisco Santos (o cineasta pioneiro que fundou o Teatro Guarany)... Nem nos damos conta dos anacronismos, esses fatos que não deveriam ser simultâneos. Mas como os desejos querem realizar-se, e o inconsciente é atemporal, tudo pode acontecer.

À direita, uma das 27 imagens do livro, perante o lugar fotografado. Pelotas e Satolep coincidem bastante.

Refletir sobre a natureza de Pelotas... É o lugar mais úmido do mundo? A tradição leva a algum futuro? O que fazer com nossas ruínas? Na decadência há algo que sobreviva? Ramil não só tem boas respostas: ainda as reúne sob um novo paradigma, a Estética do Frio (Sul-melancolia-umidade-penumbra), e nos oferece a esperança da auto-estima, a do Patinho Feio que se descobre belo em sua re-visão.

O relato dá uma elegante explicação do anagrama de “Pelotas”. Eu pensava: será uma contraposição à estética tropical (frio versus calor)? Oposição ao estabelecido, como as páginas negras do livro e a ficha catalográfica posta na última página? Ácida crítica à mentalidade regressiva, inversa ao progresso? Alusão ao movimento de ir e voltar, de sair e retornar? A resposta está nas páginas 36 e 63, que se aludem mutuamente. Até nesse detalhe, a inversão se faz lógica e mágica.

Há outra alusão interessante na foto de capa (esq.): é a mesma na contracapa, mas invertida. Observe-as bem e parecerão locais diferentes. Pelotas-Satolep?

O livro é da editora paulista Cosac Naify, com preço fixo de 39 reais. Vale como ficção, como documento histórico e como forma de autoconhecimento. Para conhecer e para amar Pelotas. Dá vontade de saboreá-lo na intimidade. Como um descobrimento psicanalítico.
Foto 1: Blog Roccana2. Foto 2 e 4: Cosac Naify. Foto 3: F.A.Vidal.

POST DATA (01-02-10): O vídeo abaixo, que promove o livro, foi feito por Eduardo Amaro da Silveira, pelotense residente em Lisboa. Sugerido por Teresinha Brandão em comentário do post "Cidade de Sombras".

Um comentário:

Anônimo disse...

Francisco, sensacional a resenha da obra do Ramil, dá vontade de ler e reler - devorar - o livro! Ele está na minha cabeceira, li as primeiras páginas... mas depois de ler tua percepção psicanalítica da obra, tenho vontade de abandonar todos os meus afazeres e me deitar, de preferência em um quarto úmido e frio, a ler SATOLEP...
Abraços, Jana