Viajando pela Espanha, hipnotizada, olho os desenhos nas pedras de Alhambra, ouço uma gravação explicando os símbolos árabes e a todo instante sou interrompida: "Olha, aqui um americano escreveu um livro..."
Mais adiante, no palácio, fazem-me ver onde o americano redigiu sua obra; visito o lugar sem entusiasmo, não é momento para livros, estou num mundo alucinante, preciso senti-lo. Mas com o tal escritor intrometendo-se em meus silêncios, está difícil.
Final de dia, calor insuportável, exaustão. Peço a chave no hotel e meu braço derruba a pilha de livros à venda: Cuentos de La Alhambra, Washington Irving. O próprio, o intrometido.
Examino a capa, as ilustrações, não resisto ao fascínio mouro. Compro a obra e, mais tarde, tonta de sono, dou uma olhada.
Vejo a palavra Salamanca e me detenho na Leyenda del soldado encantado. Desaparece o cansaço, leio num fôlego. Tenho nas mãos uma versão europeia da Salamanca do Jarau de João Simões Lopes Neto.
- Enquanto Blau Nunes, o gaúcho, tem de seu apenas um cavalo, um facão e as estradas reais, don Vicente, o estudante espanhol, além da alegria leva consigo um violão.
- O gaúcho Blau encontra um vulto de face branca e tristonha, o sacristão que, enfeitiçado, vive há 200 anos preso no cerro do Jarau que ficou sendo "o paiol das riquezas de todas as salamancas (furnas) dos outros lugares"; o espanhol don Vicente depara-se com um soldado dos reis católicos Fernando e Isabel, encantado há 300 anos nas torres de Alhambra, guardando o tesouro do último rei árabe.
- O vaqueiro gaúcho recebe uma onça de ouro furada pelo condão mágico que o fará rico; o estudante espanhol acha uma estrela de seis pontas, amuleto de extraordinário poder.
- Na lenda gaúcha, Blau irá adentrar o cerro do Jarau sob as palavras "alma forte, coração sereno, vai"; já Vicente, o espanhol, ao se encaminhar às torres de Alhambra ouvirá: si tienes fe y valor, sígueme.
Pesquisas indicavam o mesmo nódulo inicial à lenda gaúcha que, no entanto, desdobra-se na região do Prata. enquanto a obra de Irving é um registro da história oral, a de Simões Lopes Neto é prosa poética a partir da história oral, e é mais rica em desdobramentos.
O fato é que a lenda, ao que parece desconhecida em Salamanca, foi-se mundo afora. Em Granada, ganhou roteiro, personagens e símbolos. Atravessou os mares, chegou ao continente sul-americano, recebeu nova roupagem, elementos indígenas, adentrou o pampa gaúcho e se enfurnou no cerro do Jarau.
O povo, que vivia pelo meio do conflito entre mouros e cristãos, dominou-o através da palavra. Era um tempo, lamentavelmente perdido, em que os homens ainda fabulavam e não reduziam tudo ao domínio da razão. Criou as lendas, cruzou símbolos de uns e outros, abriu portas encantadas, fez e desfez magias.
Hoje, ao descobrir a lenda espanhola, sinto-me agarrando as duas pontas de um barbante que bordou e rendilhou desde o embrião dessas histórias. Impressiona-me a sabedoria popular, os arquétipos, o inconsciente coletivo, sei lá... Impressiona-me, sobretudo, que dessa mixórdia cultural árabe-cristã se originasse tanta sabedoria.
A atração entre os opostos, a busca da unicidade, é a dialética que faz o universo fluir. E na lenda, os enredo desloca-se através da dualidade: o Sol e a Lua, a mulher e o homem, os cristãos e os mouros, o crescente e a cruz.
Blau Nunes e don Vicente circulam pelo meio desses elementos e, como num bailado, vão dinamizando o alcance do UNO. Essa dinâmica, no plano valorativo dos homens, seres culturais, é entravada por ambições, ódios, vaidades, medos e tudo o que aprisiona o homem ao impedi-lo de ser ele mesmo.
Os símbolos dessa lenda fazem muito sentido nesse mundo de indivíduos reduzidos à mera "unidade econômica" destinada a trabalhar, consumir e repetir modelos estabelecidos, crescentemente apartados de suas condições de seres únicos e criativos. A busca na salamanca é pelo resgate da essência perdida, pela inteireza do EU.
E a salamanca está no cerro do Jarau, nas torres de Alhambra, ou no âmago de qualquer pessoa. Basta mergulhar, não para amealhar tesouros, eles são enfeitiçados. Mas com "alma forte e coração sereno", em busca do que Blau diz ser tudo o que não sabe o que é, porém que atina que existe fora dele, em volta dele, superior a ele, a quem chama o "tudo" e é simbolizado pela teiniaguá encantada.
Diário Popular, 29-06-2003
A Sedução da Salamanca - Leyla Lopes (1)
Blau Nunes, o vaqueano - filme de André Constantin (3)
A Princesa Moura, detalhe, Madu Lopes (6)
Blau Nunes, o vaqueano - filme de André Constantin (3)
A Princesa Moura, detalhe, Madu Lopes (6)
5 comentários:
Excelente crônica. Muito interessante e bem escrita. Como não li na época em que foi publicada, só agora comento. Parabéns Hilda!
A crônica saiu por primeira vez no Diário Popular de 29/06/2003.
"A busca é pelo resgate da essência perdida, pela inteireza do EU". Perfeito.
Há tanta magia na forma como Simões nos transmitiu essa lenda, que outro grande escritor brasileiro utilizou-se dela num capítulo de um dos maiores romances em língua portuguesa: O tempo e o vento. Érico também trabalhou a seu modo, a lenda que permeia a imaginação gaúcha e brasileira, há muito tempo. Por isso mesmo, é atemporal.
Em Simões, a estória nos é contada de forma mais agreste, mais conforme a geografia em que ela supostamente acontece. Por isso, mais convincente, contundente. A verossimilhança é extraordinária. A ferro e fogo nos coopta, nos envolve. Forte. Mãos de mestre.
Sabe o que faz. E nos deu de presente um tesouro que atravessa o tempo.
Prof.ª Loiva Hartmann
Nesta quinta 8 de agosto, o professor Flávio Loureiro Chaves fará uma conferência sobre esta lenda, no Instituto J. Simões Lopes Neto. Na quinta seguinte, Schlee falará sobre "O Negrinho do Pastoreio".
Estarei lá. O prof. Dr. Flávio, é simoneano há muito tempo. Esteve no 1º Seminário de Estudos Simoneanos em 1996. Gratíssimo lembrar aquela época, anterior ao IJSLN.
Cada simoneano foi e é um dos tijolos dessa construção.
Até hoje à noite, abraço fraterno
Prof.ª Loiva Hartmann
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