Origem do grupo
Em junho de 2002, Eduardo Brasil (de boné branco, nas fotos) operou-se neste hospital e sentia aquele nervosismo dos exames e a tensão das longas esperas. Além das complicações físicas, o silêncio fazia a vida ser um peso, e ele sentiu falta da música para distrair o tédio e animar-se de novo para a vida cotidiana. Uma vez dado de alta, ele convidou colegas sambistas – da Banda do Costinha, onde ele toca, e de outros conjuntos – para tocar e cantar uma hora por semana, e dar um pouco de esperança de viver aos que se sentem desanimados.
Uma funcionária da UFPel, familiar de Brasil, redigiu o projeto sob o nome Urutágua Tupã-í (em tupi, "Canção que vem de Deus") e a Universidade aprovou. Os músicos aceitaram o convite, escolheram o nome do grupo e o projeto não parou mais. O Medicação somente se constitui aqui no Hospital-Escola, e cada integrante toca em seus conjuntos de origem (alguns poderão ser vistos no concurso organizado pelo Diário Popular, neste fim-de-semana). [Veja nos comentários uma correção deste relato]
Sentido do projeto
Esta ideia espontânea – mas não única, pois outros grupos musicais e religiosos esporadicamente visitam o hospital – veio fazer parte de um grande projeto de bem-estar, onde se incluem a Ouvidoria, o Corredor Arte, a Internação Domiciliar para Oncologia, Campanha do agasalho, Combate ao fumo, Combate ao diabetes, Saúde na estrada (para caminhoneiros) e vários outros programas.
O objetivo geral é médico: amenizar o sofrimento e contribuir à saúde em sentido integral. O meio é musical, mas a atividade é uma espécie de oração ritual terapêutica, de conteúdo espiritual, corporal e coletivo. Os beneficiados são, supostamente, os definidos como doentes, mas a música chega a todos os que podem reconhecer e manifestar seus sentimentos.
Sendo uma atividade voluntária, não dá retorno algum aos integrantes (de fato, o hospital não lhes serve nem um copo d'água), mas o atual diretor providenciou vales-transporte para cada um do grupo, como reconhecimento de sua contribuição à saúde.
As pessoas que participam
Quem vai na frente, mesmo não sendo parte do grupo, é Carla Carvalho (à dir. com crachá, no corredor da maternidade), a ouvidora do hospital, intermediária que acolhe queixas e sugestões da comunidade e as encaminha à direção institucional.
A função de Carla é levar o grupo pelos setores do hospital e ouvir as opiniões dos usuários. A presença dela, inclusive vestindo de branco, representa a aprovação do hospital e ajuda a conter a alegria dos músicos, que vai aumentando, com o sentido de mantê-los na missão. Poderia haver queixas - pois o projeto rompe com o tradicional silêncio e assepsia dos hospitais - mas Carla garante que nunca recebeu uma só reclamação.
Conduzem a harmonia Lauro Pereira no cavaquinho (esq.) e Rogério Silveira no banjo (dir.), que também escolhe as melodias na hora e é tido como o mais brincalhão e "bagunceiro", como ele mesmo se define (se deixassem, ele entraria em todos os quartos tocando). Ele é motor musical e alma do grupo.
Logo atrás, vão Eduardo Brasil no tantã e Miro Pedroso no pandeiro verde-amarelo, que são os mais antigos, fiéis ao projeto desde a fundação.
Na retaguarda, outros percussionistas marcam o ritmo que embala e mantém o ânimo elevado: Pierre Tavares (pandeiro), seu Amaro (tamborim) e seu Páuzio (chocalho).
As vozes não são trabalhadas nem eles têm estudos musicais, mas a unidade do grupo, a firmeza rítmica e o entusiasmo são contagiantes e avassalam todo pensamento negativo. No caminho, o objetivo é incluir todas as pessoas que quiserem mostrar sua alegria e, se for possível, facilitar a autossanação por essa alegria, por mínima que seja.
O trajeto dentro do hospital
O ritual começa cada quinta (exceto feriados), pouco antes das 15h, quando os músicos se concentram no bar defronte ao hospital, pela Rua Professor Araújo. Não ensaiam nem combinam nada, exceto a hora de chegar e a afinação dos dois instrumentos harmônicos. O trajeto pelos setores é um ritual que nunca muda.
O início é pela Oncologia, onde há exames de câncer e pacientes em quimioterapia (esq.). Os músicos já sabem que a recepção aqui será a menos fácil – mesmo que não de rejeição – e por isso entram com muito respeito, sem perder a necessária ousadia. Como agentes de saúde, eles sabem que depois da injeção vem o alívio.
O passeio pela Oncologia é uma surpresa para os usuários, pois a maioria deles está ali por primeira vez, e até caras de espanto se veem naqueles que têm uma doença grave e não esperariam uma serenata em pleno dia. Com certeza, todos já viram um conjunto vocal alguma vez, mas não numa situação tão séria. O impacto é como o de quem vê Papai Noel, achando que não existia. Mas logo vem a aceitação. O princípio desta terapia emocional é que se o corpo sorrir primeiro, a alma sorrirá depois: no momento seguinte, ou dias mais tarde – é questão de tempo.
Brasil acena aos pacientes fazendo com a mão um gesto de força; alguns respondem timidamente, mas a sensação geral é de que o salão de espera se transformou num palco. Dores e tristezas ficam suspendidas. Fotógrafos de celular vão atrás e registram as cenas. O grupo, no entanto, não se detém em momento algum (as máquinas fotográficas precisam ser rápidas).
Saindo dali, o grupo de repente faz silêncio: estamos passando pela U.T.I da Pediatria, que é norma respeitar. Ainda no mesmo setor, a música é retomada e algumas crianças vêm ver o desfile (dir.). Elas também são tomadas de surpresa, mas acreditam logo no que veem. Sorriem com aprovação, mesmo não se somando à festa.
O ritmo não será mais interrompido, nem sequer subindo e descendo as escadas (primeiras fotos acima). Na maternidade, a visita não causa tanta surpresa e é implicitamente recebida como uma homenagem à vida e aos bebês que estão por nascer. O sentido amoroso fica mais claro, neste encontro entre visitantes homens e pacientes mulheres, que mesmo internadas não estão enfermas.
É na Clínica Médica, a seguir, que a alegria começa a transbordar: aqui o grupo entra num quarto com liberdade (foto abaixo) e no corredor alguns funcionários dançam junto com pacientes. Vários participam acompanhando o cordão.
Aqui é onde se pode ver melhor o que Chico Buarque descreveu na música A Banda: as individualidades das almas são despertadas, vivem uma união aparente e, no final, guardam parte desta ilusória alegria para seguir vivendo.
Neste setor há dois tipos de reação: quem já conhece o grupo – por estar ali hospitalizado há mais de uma semana – se encanta pela visita esperada, e os "novos" arregalam os olhos por uns minutos e, mesmo não sambando, gradualmente vão desenhando um sorriso. O espírito muda a direção do pensamento, como foi o caso da moça com soro que estava sentada no corredor: ela foi incentivada a seguir a banda (uma pessoa levava o soro levantado - foto acima) e, em minutos, seu ânimo e sua atitude eram as de uma pessoa que havia esquecido seu estado físico. A terapia mostrava seus efeitos.
Avaliação
Depois de 40 minutos, o clima de festa estava instalado e não havia reclamações. Mas acabou-se o que era doce e o trabalho continua: dentro do hospital e fora dele. Mesmo sem muita organização e sem financiamento, os objetivos foram alcançados, que é o importante.
Se o projeto for avaliado em detalhe, se verá beneficiado de algum tipo de planejamento: na preparação vocal, na escolha das letras ou de vestimentas uniformes. Os integrantes não têm aspecto de artistas nem de enfermeiros, apesar de unir as duas funções. No grupo Medicação, por agora, a disciplina unificadora é a do ritmo, e o entusiasmo transborda até precisar dizer: "Por hoje chega, até a próxima quinta".
Fotos de F. A. Vidal (21 jan)
Vídeos: H. Schwonke, Completa Comunicação (14 jan)