O escritor pelotense Manoel Soares Magalhães vem pintando quadros há uns três anos, e tem mostrado vários deles no blogue seu que apresentei em 2009 (veja postagem).
Na ocasião, ele já planejava expor essa primeira produção, que tem crescido em quantidade, sempre no estilo conhecido como arte naïve (veja uma definição), que desenvolveu com a artista plástica Carmen Garrez, precursora da arte ingênua no Rio Grande do Sul (leia nota sobre seu trabalho).
Chegou a hora, afinal: ontem (25) Manoel levou ao Corredor Arte dezoito telas em acrílico, estreando formalmente como artista plástico, com sua primeira mostra individual: "No tempo das charqueadas".
Em seus relatos escritos, o Manoel escritor fala de personagens e lugares de nossa cidade, conhecedor de sua história e de seus meandros sociais e mentais. Entretanto, seu objetivo é que o leitor também possa ver o sentido universal do acontecimento pelotense. Por isso, seus contos e crônicas - mesmo podendo ser de qualquer cidade - escondem detalhes e sutilezas que somente um estrangeiro poderia identificar como próprios de nossa aldeia, já que nós estamos acostumados demais com eles.
Os quadros de Manoel são crônicas visuais, mas não são somente isso: elas têm um olhar paternal, ao mesmo tempo crítico e amoroso, sobre a sociedade e seus dramas. Se bem sabemos que a riqueza de Pelotas dependeu das charqueadas, nem sempre enxergamos a tragédia humana contida nesse processo; somente os resultados bonitos, que ficaram por cima do tapete. Com as gerações, foram-se dissipando lentamente as dores e as flores, e o pintor aqui nos faz percebê-las. O drama é nosso, mas também é universal, tanto nas épocas como na geografia. Como é nosso, toca-nos resolvê-lo; como é universal, podemos evadi-lo ad eternum.
A tela "No Varal" (acima) divide com um sub-horizonte social os dois mundos contrapostos na terra: o dos afãs luminosos e o do trabalho que exaure até a morte. As carnes esgotadas secam ao sol, inclusive a humana (esq.). Acima do horizonte natural, um mundo espiritual, invisível, onde vão dar as almas necessitadas de paz e redenção.
O estilo de traços ingênuos, cores infantis e conteúdos naturais - conhecido como naïve - serve ao artista para dizer coisas complexas com simplicidade, sem ligar-se a teorias ou procedimentos acadêmicos (clássicos, modernos ou contemporâneos). Equivale a um jogo de cintura para driblar os formalismos da intelectualidade e da arte universitária.
Sua mensagem é pessoal e atemporal, e seu método quer ser um testemunho próprio de Pelotas. Na pintura assim como na literatura, a voz do artista se confunde com as vozes dos habitantes da cidade, especialmente os que a sociedade marginalizou, ao longo da história. Os excluídos são protagonistas e falam claro, por este mediador. A arte cumpre sua função redentora, como linguagem de libertação.
Mas o artista não somente fala em nome de outros; ele também se pronuncia. Na literatura, uma de suas mensagens indiretas - derivadas do foco em personagens marginais - alude aos poderosos, ditos "incluídos", que "tapam o sol com a peneira" em diversos sentidos. Na pintura, porém, Magalhães é tão explícito como um documentarista. Segundo ele mesmo diz, o que ele deseja mostrar é, junto à opulência de Pelotas, o sonho de espiritualização dos negros (dir.), que tentam libertar-se da opressão do branco mediante o sincretismo religioso (de elementos cristãos e africanos).
Na tela "Matadouro" (abaixo), vemos a impiedade do trabalho de abate e carneação à beira do rio, verdadeira evocação do inferno na terra: vítimas animais e humanas, operários da morte, um campo verde (como atualmente se pintam os cemitérios). Os beneficiários do charqueio não estão visíveis nem tomam conhecimento da origem de seus manjares e saraus. Com o tempo, os saladeros fecharão, e o sofrimento será elaborado, mas novos motivos aparecerão para o ódio e o amor: na violência sádica, na exploração injusta, no serviço dedicado, na criatividade artística.
Pode-se dizer que “No tempo das charqueadas” se mostra ingênua na forma e crítica no conteúdo, estimulando uma necessária reflexão sobre um período de riqueza e, ao mesmo tempo, de crueldade da vida dos pelotenses, sem deixar de sugerir ideias sobre nosso presente e futuro como sociedade cheia de erros e confusões.
Imagens: F. A. Vidal
5 comentários:
Que trabalho mangnífico. Que talento para utilizar-se de formas simples para dar ênfase ao barbarismo da escravidão. Na minha opinião um grande painelista se anuncia. Belíssimo trabalho. Crônica excelente também. Parabéns.
Lindas telas. Um trabalho notável.
Um colorido vivo, maravilhoso. O autor tá de parabéns.
Acho que todos os pelotenses deveriam ir no corredor de arte da FAU e ver a mostra de Manoel. É de uma beleza ímpar, além de falar de nossa história. Não percam!
A tela "No varal" é muito linda. O artista é muito talentoso, de visão crítica também. Um belo trabalho.
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