Flávia Rieth, Marília Kosby e Mario Osorio Magalhães, participantes do Inventário do Doce, escreveram o seguinte artigo (leia no Diário Popular) sobre a pesquisa que conduziu à aprovação pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) da inscrição da “Região Doceira de Pelotas” como patrimônio imaterial brasileiro, no Livro de Registro dos Lugares, do Ministério da Cultura.
A doçaria pelotense compõe-se de duas tradições: a dos doces finos e a dos doces coloniais. Ambas se reportam à história da cidade, ao período de opulência, decorrente da riqueza que a indústria do charque produziu, sustentada pela mão de obra escrava de africanos e seus descendentes.
A tradição dos doces finos (dir.) tem sua origem vinculada ao cotidiano de lazer dos industriais do charque, de linhagem portuguesa, concentrando-se, sobretudo, na sede do município, no interior dos casarões e sobrados que esses empreendedores construíram.
No século XX, coincidindo com o fim do período áureo das charqueadas e por intermédio das recém surgidas confeitarias, esses doces e suas receitas se expandiram pela cidade, tornando-se, em alguns casos, fonte de renda de algumas famílias que antes se sustentavam do lucro saladeiril.
A produção dos doces coloniais (abaixo) está diretamente relacionada aos processos políticos decorrentes do fim da escravidão no país: a maioria dos charqueadores era proprietária de uma chácara no interior do município, com a finalidade de ocupar os escravos no período da entressafra; essas terras foram, após a Abolição da Escravatura, vendidas ou arrendadas, dando origem a algumas colônias, as quais receberam inúmeros contingentes de imigrantes europeus, tais como franceses, espanhóis, pomeranos, austríacos, italianos e alemães.
Com a consolidação desses imigrantes como colonos, verificou-se um aumento do cultivo do pêssego, da laranja, da maçã, do figo, da goiaba, do marmelo, que resultou na produção, inicialmente artesanal, dos derivados dessas frutas associados ao açúcar, tais como compotas, doces de massa de fruta, passas e cristalizados.
Estas duas tradições se disseminaram pelos mais diferentes espaços de sociabilidade de Pelotas, incorporando novos significados, desdobrando-se em novos ingredientes e adaptando-se ao paladar dos pelotenses.
Um exemplo da multiplicidade de forças criativas que perpetuam essas tradições é o encontro entre o sentido de amabilidade e celebração que o doce adquiriu na cidade e o culto à doçura, vivenciado pelas religiões afro-brasileiras, nas quais os doces são utilizados como oferendas aos orixás, presentes, demonstrações de carinho e desejo de tranquilidade e alegria.
Na FENADOCE, evento em que fica evidenciado o caráter criativo da manutenção desta tradição, concursos são feitos, doces são inventados e perpetuados, novos ingredientes são incorporados, novos sentidos e valores são atribuídos, processando a atualização dessa doçaria. Valorizam-se então, na região de Pelotas, suas doceiras, sua produção familiar, religiosidade, território, classe social, identidade étnica. Ressalta-se, enfim, a história de uma cidade que se consagra como Capital Nacional do Doce.
Foto 1: Vinícius Costa
Nenhum comentário:
Postar um comentário