quinta-feira, 26 de agosto de 2010
"No tempo das charqueadas", um olhar atemporal
Na ocasião, ele já planejava expor essa primeira produção, que tem crescido em quantidade, sempre no estilo conhecido como arte naïve (veja uma definição), que desenvolveu com a artista plástica Carmen Garrez, precursora da arte ingênua no Rio Grande do Sul (leia nota sobre seu trabalho).
Chegou a hora, afinal: ontem (25) Manoel levou ao Corredor Arte dezoito telas em acrílico, estreando formalmente como artista plástico, com sua primeira mostra individual: "No tempo das charqueadas".
Em seus relatos escritos, o Manoel escritor fala de personagens e lugares de nossa cidade, conhecedor de sua história e de seus meandros sociais e mentais. Entretanto, seu objetivo é que o leitor também possa ver o sentido universal do acontecimento pelotense. Por isso, seus contos e crônicas - mesmo podendo ser de qualquer cidade - escondem detalhes e sutilezas que somente um estrangeiro poderia identificar como próprios de nossa aldeia, já que nós estamos acostumados demais com eles.
Os quadros de Manoel são crônicas visuais, mas não são somente isso: elas têm um olhar paternal, ao mesmo tempo crítico e amoroso, sobre a sociedade e seus dramas. Se bem sabemos que a riqueza de Pelotas dependeu das charqueadas, nem sempre enxergamos a tragédia humana contida nesse processo; somente os resultados bonitos, que ficaram por cima do tapete. Com as gerações, foram-se dissipando lentamente as dores e as flores, e o pintor aqui nos faz percebê-las. O drama é nosso, mas também é universal, tanto nas épocas como na geografia. Como é nosso, toca-nos resolvê-lo; como é universal, podemos evadi-lo ad eternum.
A tela "No Varal" (acima) divide com um sub-horizonte social os dois mundos contrapostos na terra: o dos afãs luminosos e o do trabalho que exaure até a morte. As carnes esgotadas secam ao sol, inclusive a humana (esq.). Acima do horizonte natural, um mundo espiritual, invisível, onde vão dar as almas necessitadas de paz e redenção.
O estilo de traços ingênuos, cores infantis e conteúdos naturais - conhecido como naïve - serve ao artista para dizer coisas complexas com simplicidade, sem ligar-se a teorias ou procedimentos acadêmicos (clássicos, modernos ou contemporâneos). Equivale a um jogo de cintura para driblar os formalismos da intelectualidade e da arte universitária.
Sua mensagem é pessoal e atemporal, e seu método quer ser um testemunho próprio de Pelotas. Na pintura assim como na literatura, a voz do artista se confunde com as vozes dos habitantes da cidade, especialmente os que a sociedade marginalizou, ao longo da história. Os excluídos são protagonistas e falam claro, por este mediador. A arte cumpre sua função redentora, como linguagem de libertação.
Mas o artista não somente fala em nome de outros; ele também se pronuncia. Na literatura, uma de suas mensagens indiretas - derivadas do foco em personagens marginais - alude aos poderosos, ditos "incluídos", que "tapam o sol com a peneira" em diversos sentidos. Na pintura, porém, Magalhães é tão explícito como um documentarista. Segundo ele mesmo diz, o que ele deseja mostrar é, junto à opulência de Pelotas, o sonho de espiritualização dos negros (dir.), que tentam libertar-se da opressão do branco mediante o sincretismo religioso (de elementos cristãos e africanos).
Na tela "Matadouro" (abaixo), vemos a impiedade do trabalho de abate e carneação à beira do rio, verdadeira evocação do inferno na terra: vítimas animais e humanas, operários da morte, um campo verde (como atualmente se pintam os cemitérios). Os beneficiários do charqueio não estão visíveis nem tomam conhecimento da origem de seus manjares e saraus. Com o tempo, os saladeros fecharão, e o sofrimento será elaborado, mas novos motivos aparecerão para o ódio e o amor: na violência sádica, na exploração injusta, no serviço dedicado, na criatividade artística.
Pode-se dizer que “No tempo das charqueadas” se mostra ingênua na forma e crítica no conteúdo, estimulando uma necessária reflexão sobre um período de riqueza e, ao mesmo tempo, de crueldade da vida dos pelotenses, sem deixar de sugerir ideias sobre nosso presente e futuro como sociedade cheia de erros e confusões.
Imagens: F. A. Vidal
terça-feira, 24 de agosto de 2010
Um encontro com Getúlio Vargas
O artigo tem valor de documento histórico, pois se refere à terceira passagem do governante por Pelotas (as anteriores foram em 1925 e 1943) e cita as ligações do ex-presidente, todas gaúchas, como Osvaldo Aranha, Heron Domingues (o Repórter Esso) e o guarda-costas Fortunato, que ganhou recente biografia (leia nota).
Foi no início do inverno de 1950. Getúlio Vargas estava em caravana política por Pelotas e em sua comitiva veio o coronel Eurico de Souza Gomes, pelotense e diretor da Central do Brasil. Carlos Barboza Furtado, que era cunhado do coronel e casado com uma de minhas primas-irmãs, perguntou-me:
─ Vou ao encontro do Eurico, que está lá no Grande Hotel: queres ir comigo?
Prontamente concordei. Ao lá chegarmos, um número enorme de pessoas se apertava frente ao hotel. Nós fomos abrindo caminho pela multidão. Nesse momento, vejo – vindo da esquina fronteira ao hotel – o ex-ministro Oswaldo Aranha, de braço com o doutor José Brusque, médico que hoje tem estátua em nossa principal praça. Em seguida chegamos à escada que levava ao primeiro andar, onde estava parte da comitiva. Carlos Furtado, meu primo político, solicitou a um integrante da comitiva que cientificasse ao Cel. Eurico que seu cunhado estava ali. O militar, solícito, subiu a escada apinhada de gente; após breve demora, apareceu na grade, no patamar do primeiro andar, a figura de Eurico, fazendo sinais com a mão para que subíssemos. Carlos puxou-me pelo braço e fui atrás dele.
No momento que atingíamos o primeiro piso, de um quarto, à esquerda, vinha saindo Getúlio Vargas em direção ao quarto principal, que dava para a frente do Grande Hotel, ante a praça Cel. Pedro Osório, no mesmo piso. Ao vê-lo ante mim ─ pele crestada pelo sol, sorridente; trajando um terno de casimira azul, com listras largas, esbranquiçadas, sobre os ombros um xale de cor marrom com franjas ─ estendi-lhe a mão, como fizera o Carlos, e ele retribuiu o gesto, sempre sorrindo, detendo-se por segundos em sua marcha, sem nada dizer.
Nesse exato momento, olhei para a porta do quarto de onde o agora ex-presidente saíra, portas abertas em par, e vi a figura de um negro enorme, sem chapéu, apenas com uma camisa branca, apoiando-se com ambas as mãos na parte superior da porta, tal sua altura. Era o famoso tenente Gregório Fortunato, que fiscalizava o pequeno trajeto de seu chefe, creio, cuidando o percurso “do homem”.
Foi tudo muito rápido, pode-se imaginar. Mas a cena ficou-me gravada na mente até hoje, pelo carisma inegável com que aquele homem de baixa estatura imediatamente eletrizava as pessoas. Ele estava vivendo seus tempos finais como simples humano. Em breve se tornaria um mito.
Saímos de carro e percorremos vários pontos da cidade que Eurico de Souza Gomes, pelotense, não revia há muitos anos. Fomos até a chácara em que passara longas temporadas com a família, na Guabiroba. Foi uma tarde em que rodamos muito, ele matando saudades. Lembro-me que fez questão de ir ao Café João Pessoa, depois Nacional e hoje Aquário.
Voltando à figura ilustre e carismática de Getúlio Vargas, só vim a lembrar-me dele, com ansiedade, em certa manhã, pelas 8h de 24 de agosto de 1954. Eu me arrumava para sair para o trabalho quando ouço na Rádio Nacional, em edição extraordinária, a notícia dada por Eron Domingues, emocionado, cientificando ao País que, naquele momento, havia se suicidado Getúlio Vargas com um tiro no peito, após forte pressão do Exército à beira da insurreição. “Serenamente saio da vida para entrar na História”, deixou escrito.
Já tenho contado aos meus netos com orgulho que, embora fortuitamente, apertei a mão de um homem que jamais sairá das páginas da nossa história, e que realmente foi um líder que deixou muitas obras importantes. Contei-lhes quem foi este grande homem, para que reconheçam o mito, mais tarde, ao folharem as páginas da História, e seguindo a tradição verbal de família dos que, como eu, fui seu contemporâneo.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Objetos que falam da intimidade
As imagens se referem a uma pesquisa que Ivana Nicola Lopes - doutora em História da Arte pela Universitat de Barcelona - realizou para um pós-doutorado que cursou na Faculdade de Educação da UFRGS.
Professora de História da Arte e de Teoria e Crítica da Arte na FURG, Ivana trabalhou com um grupo de mulheres - a maioria em tratamento na clínica médica de Eduardo Devens, em Pelotas -, com o objetivo de examinar a influência das artes na cultura popular.
No exercício artístico-afetivo, cada participante falou de pertences com significados importantes para elas, coincidindo que todas, como por encanto, guardavam esses objetos até hoje. A artista plástica Norma Alves se dispôs a pensar a exposição, fotografar os objetos-testemunhos e desenhar o convite. Por outro lado, Ivana redigiu descrições poéticas inspiradas em cada figura, a modo de uma devolução de mãe-boa.
O espaço da exposição também dialoga com as imagens, representando aquele um útero-bom, compreensivo e tranquilizador, e estas últimas elementos carregados de emotividade (mais amorosa do que dolorosa). A sala Chico Madrid é coordenada pelo médico-fotógrafo Eduardo Devens.
Imagens: N. Alves (1), I. Lopes (2)
sábado, 21 de agosto de 2010
Pintura de Fátima Ferreira
De frente para o templo, ela recortou metade do que via, como todo artista e toda pessoa humana fazem ante uma realidade física ou social. Inclusive os documentaristas - que teoricamente deveriam registrar tudo o possível - fazem segmentações, à base de suas percepções e das mensagens que querem passar.
O recorte feito pela artista juntou parte da fachada da igreja a um farol aceso. Os dois detalhes são reais e se encontram na Praça José Bonifácio, mas os transeuntes não os percebem relacionados. Com esta pintura semidocumental podemos fazer a conexão entre os dois símbolos. Ambos são construções humanas que apontam para o alto, sugerindo relação com o divino. Colocados lado a lado, dialogam de formas novas, que o espectador poderá interpretar livremente.
Fátima é portuguesa, aluna nova do Ateliê Giane Casaretto; apesar de ainda não ter realizado uma mostra individual, desponta como uma criadora com bom trabalho técnico e sensibilidade visual.
Foto: F. A. Vidal
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Pedestres em risco por falta de consciência urbana
Fotos de F. A. Vidal
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Mostra individual de Izabel Bretanha
Izabel prefere o gênero abstrato, com profusão de cores e liberdade de formas. Gestos e ritmos são transferidos às telas e, sem expressar significados conhecidos pela razão, deixam impressões de agrado e curiosidade. Se estas obras modernas tivessem um equivalente musical, este soaria como uma orquestra de câmara ou um grupo de jazz.
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Vitral de Pentecostes
O maior templo de Pelotas foi totalmente reformado quando a Diocese católica completava 40 anos. O financiamento proveio de quermesses e doações, organizadas pelo bispo. Dom Antônio Zattera entregou a nova Catedral em dezembro de 1950, na Missa de Natal. O altar de mármore foi inaugurado em agosto de 1951.
Entre os grandes vitrais, o que me parece mais interessante é o que representa o Pentecostes cristão, em que Deus se doa ao coração dos homens (Atos dos Apóstolos cap. 2). A imagem se encontra do lado norte do templo, próximo ao altar principal.
Nesta cena, os apóstolos aparecem reunidos em torno a Maria, quando os visita o Espírito Santo, representado por uma pomba (pela descrição de Mateus 3, 16). São doze homens, pois Judas já havia sido substituído por Matias (segundo Atos 1, 26). O dia de Pentecostes celebra-se 7 semanas após a Páscoa, na mesma data tanto para o judaísmo como para todas as denominações cristãs.
Os vitrais foram colocados em 1933 (leia histórico da Catedral) e restaurados em 2005, à base de contribuições da comunidade. Seguindo um costume da classe alta pelotense, os nomes dos doadores ficam expostos em cada obra e em cada restauração, como se fossem os autores. Em todo caso, não se pode dizer que essa prática tão humana infrinja o ensinamento de Jesus (segundo Mateus 6, 3), pois não se trata de uma esmola.
Imagens: F. A. Vidal
Artigo sobre a pesca na Lagoa dos Patos
O projeto (chamado “Ilha dos Marinheiros”) foi realizado com pescadores em Rio Grande, e a ideia nasceu enquanto Solano participava do jornal da comunidade da Colônia Z-3 (O Pescador). O trabalho tem a forma de um artigo jornalístico, contendo um relato em imagens e um texto escrito, sobre o lado humano da pesca na Lagoa dos Patos.
Fotos de Solano Ferreira (UCPel)
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Documentário sobre a Recotada
O documentário sobre a megaexposição "ReCotada" - realizada em março de 2010 no prédio da antiga fábrica da Cotada - é o primeiro projeto da produtora Documenta. Seus autores - Camila Sequeira, Cassiano Miranda e Márcio Mello, todos de formação jornalística - estarão presentes na sessão e debaterão com os presentes sobre seu trabalho, do ponto de vista cinematográfico. O filme terá apresentação oficial no IAD dia 9 de setembro. Alguns trabalhos plásticos da ReCotada já apareceram neste blogue, e seguirão sendo citados.
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
VI Mostra de Teatro e Dança de Origem Africana
A Mostra se realiza anualmente desde 2004 em diversos locais de Pelotas, sempre em novembro. Em 2009 houve uma variação, quando bailarinos de grupos locais apresentaram, nesse mês, o espetáculo "Maria, Marias" no Rio de Janeiro. Por isso a 6ª versão do evento ficou para 2010.
domingo, 15 de agosto de 2010
O leitor passeante dos livros de pedra
Naquele domingo 16 de agosto, Manoel expressou um sadio protesto ante a crônica do sábado 15 Fim de semana em Pelotas, de Roberto Soares. O editor publicou a reação com o título: Voz do leitor: Amor e ódio pelo "torrão" natal. Os leitores polemizaram, mas aprovaram os dois artigos, preferindo ou o tom mais realista de Roberto ou o mais poético e encantado com a cidade, de Manoel. Leia abaixo seus comentários e uma conclusão minha.
"Pelotas não é nem melhor nem pior que outras cidades. Nosso amor por ela é que a distingue de outras, de maior ou menor porte.
Entendo que tenhamos uma relação de amor e ódio com o "torrão" natal. É da vida. É do ser humano. Idiossincrasia à parte, penso que depende de nós encontrarmos referência que nos agrade, plasmada no imaginário da cidade. Depende muito do flaneur, cujo olhar não esteja esgotado, desiludido.
É uma característica dos nativos exaurir seu olhar e, em razão disso, perder a capacidade de enxergar poemas onde os poemas estão.
As cidades são livros de pedras cotidianamente lidos. Mas são possíveis releituras, arrancando-lhes outras perspectivas visuais. Depende muito, evidentemente, de nossa capacidade de encantamento, magia que se processa nas almas libertas - e não quero dizer com isso que a alma de Roberto (autor do artigo) é cativa pelo fato de ele demonstrar certo cansaço em relação à cidade.
Pela forma como escreve, percebe-se sua imaginação e poder de encantamento. Entretanto, o que lhe falta para ver a cidade com um olhar, digamos, mais amoroso?
Não saberia dizê-lo. Sei o que posso fazer - e constantemente faço, isto é, deixar-me ir meio sem destino, buscando encontrar surpresas no caminho, e de fato encontrando-as. E afirmo, não são surpresas negativas, não, malgrado a cidade esteja necessitando constantemente de ajuda, de nossa ajuda. Um bom domingo a todos!"
- O apontamento do Roberto é prático no aspecto comum do que é cultura, cidade, logística e turismo.
A cidade tá deficitária sim e precisa de uma chacoalhada, seja dos visionários ou dos carentes de melhor visão que podem reclamar disso! - Considero o imaginário maravilhoso mas não dá pra viver só disso, pois existe um mundo lá fora pelo qual se pode melhorar. Creio que a questão do centro em si não seja o ponto alto da questão, visto que aos finais de semana há deslocamento de atividades como na Avenida Bento, Laranjal, Dom Joaquim e etc. O que entendo é que vemos no centro apenas uma cidade cenário em promessa de revitalização e conservação histórica. O afeto à cidade natal não é exclusividade de Pelotas. Basta perguntar o que um "imigrante" de Sta Vitória ou Jaguarão pensa de sua cidade de origem.
- Na minha opinião Roberto foi mais objetivo e a poética ainda que interessante de Manoel me pareceu deslocada, pois que tira o foco da falta de atenção em melhorias da cidade, de toda forma acrescentam observações interessantes em contextos diferentes.
- Não esqueçamos que Satolep sugere certa antítese da Pelotas real numa contestação do que insatisfaz, como disse o próprio [Ramil] a respeito no livro Satolep.
"...Não fixar Satolep como a Pelotas de 1922, por exemplo, mas também não deixar de mostrar essa Pelotas do passado que é a base. Não deixar de protestar, de fazer uma crítica à Pelotas real, a essa Pelotas que já não existe por nossa própria culpa, pelo nosso descaso, não só de Pelotas, mas pelo descaso geral do Brasil à preservação da história. Muita gente lá em São Paulo que trabalhou no livro via as fotos e ficava chocado: "Então Pelotas já foi assim?". Para mim que sou um apaixonado pelas coisas antigas, essa questão tinha muita relevância." - O imaginário não pode ser limitador, mas deve justamente impulsionar a melhorar o real!
Concordando com Manoel
- Realmente a cidade é de uma complexidade muito maior do que seus problemas ou qualidades, ela é um construto orgânico e como tal necessita também um olhar amoroso e, há 10 anos fora, cada vez que retorno a cidade consegue me encantar, pois cada novo olhar me revela, sem necessariamente ocultar suas mazelas graves, uma outra cidade que me encanta, quer na gentileza de nosso povo, quer na beleza de sua histórica geometria urbana e arquitetura que foram, por sinal, a base para Satolep de Vitor Ramil, o qual lançou sob a camada da crise que patinou nossa autoestima um olhar possível e amoroso sobre Pelotas.
- Excelente texto. As cidades sao dotadas de grande complexidade, e não podem ser vistas de forma "pequena". Magalhães tá de parabéns pelo texto.
Dalva - Roberto, que escreve muito bem, errou a mão em seu artigo. Faltou ao seu texto o tempero poético que sobrou no texto de Magalhães, assim como sobra em Satolep, de Ramil, onde também a poesia é amplamente anunciada.
Carolina - Lindo texto. Profundo e reflexivo, demonstrando a complexidade das cidades.
- Visões deterministas são míopes. Magalhães, em seu texto, dá a verdadeira dimensão das coisas. Muito legal!
- Ando cansada de ver Pelotas são maltratada - na maioria das vezes por visoes equivocadas. Acho que a maioria das pessoas que a criticam negativamente não tem o hábito de viajar. Se viajassem veriam que as todas as cidades, a exemplo de Pelotas, são organismos vivos, pulsantes, recheados de coisas boas e ruins. O senhor Magalhães viu isso - e viu muito bem! Seu texto tem dimensões poéticas e humana, sem deixar de perceber as coisas negativas. É assim, na minha opinião, que se deve observar as cidades.
Antonia - arquiteta. - Comparar a cidade a livros de pedra é um achado! Tenha certeza o autor da definição que daqui para frente olharei Pelotas de forma diferente.
- Um rico texto. De quem tem vocação para poeta.
Patricia
- Roberto e Magalhães, cada um ao seu jeito, deram mostras de que em Pelotas tem gente que pensa a cidade como um organismo vital. Em posições antagônicas acerca de perspectivas visuais, isto é, na forma como enxergam a mesma cidade, estão juntos no conjunto, ambos valorizando uma discussão que tem de ter nível - e seus textos atestam isso. Parabéns ao editor por contar com nomes de peso em seu elenco de articulistas. Pelotas jamais será a mesma para quem leu os respectivos trabalhos, avaliando-os de acordo com suas respectivas sensibilidades. Nós, pelotenses, ganhamos.
- Não gosto de estereótipos. Concordo que a cidade não é nem melhor e nem pior.
Apesar da diferença de visão, os dois articulistas parecem ser o tipo de andarilho (flâneur) que observa a cidade, buscando: seja decifrá-la, como leitor ouvinte, ou corrigi-la, como interventor.
Escreve Danielle Melchiades no artigo Trilhando diálogos com Baudelaire: "O flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descreve as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo".
Portanto, Roberto e Manoel são cronistas a ser lidos de modo complementar, pois falam da mesma cidade na mesma época, diferenciando-se não na inteligência mas no sentimento de estresse ou de serenidade.
Imagens da web e Cosac Naify (3)
sábado, 14 de agosto de 2010
Morte por estresse na água doce
Ao amanhecer desta quarta (11), milhares de peixes apareceram jogados na orla do Laranjal, desde o Totó até o Pontal da Barra. Um funcionário da limpeza urbana disse que nunca tinha visto tantos animais mortos, mesmo sendo um fenômeno comum quando há mudança de ventos. Alguns ainda estavam vivos e, segundo a notícia, totalizaram 4 caçambas cheias (leia).
A causa parecia ser de tipo climático: uma inversão térmica na lagoa ou - o mais provável - uma diferença de salobridade da água, que para nós é refresco mas para os bichos é questão de vida ou morte. Por não ser grande novidade, a imprensa não deu maior importância.
O relatório da FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental), emitido sexta (13), descartou uma possível contaminação na água, e avaliou a quantidade de peixes mortos em 800 quilos. Segundo o laudo, uma entrada de água do mar trouxe, há duas semanas, um cardume de bagres à lagoa - que é de água doce. Terminado o fluxo salgado, os peixes jovens não conseguiram retornar e, tolerando a situação adversa alguns dias, foram levados ao que se chama Estresse de Sobrevivência. No dia 10 de agosto a temperatura subiu e os peixes morreram por não poder adaptar-se ao novo meio, não salgado e quente (leia a notícia).
O estresse normal ocorre quando mudanças ambientais ou dos organismos (os "estressores" ou causas de ansiedade) geram defesas adaptativas, com o sentido de sobrevivência. Um alto estresse pode causar doenças, inibir a reprodução e até causar a morte, quando os estressores são muitos ou se prolongam no tempo. Foi o caso destes peixes, que não puderam sobreviver na água doce.
No verão de 2007, uma grande mortandade de peixes no arroio Moreira (esq.) foi atribuída à salinização proveniente do São Gonçalo, apesar de que também existe poluição industrial na zona. O volume foi estimado - sucessivamente - em 12, 20 e 40 toneladas de peixes mortos (leia notícias). Na ocasião, um vereador pelotense fez notar, em sessão da Câmara, sua estranheza quanto à indiferença da população e do executivo ante a morte de peixes (Ata de 30-01-2007).
O desastre ecológico foi noticiado em todo o país, mas aqui em Pelotas é atribuído a um simples fato da natureza, que consideramos cotidiano: o avanço periódico das águas oceânicas no território "doce" continental.
Será possível fazer um paralelo entre nossa crise histórica (do vazio do charque ao crescimento do doce), nossa indefinição geográfica entre Brasil e Uruguai (medo de invasões castelhanas), as correntes marítimas que extinguem peixes por estresse (invasão do mar), e esse temor de ser nós mesmos e iniciar empreendimentos com segurança?
Seremos como peixes com a missão impossível de sobreviver em ambiente ora doce, ora salgado?
Foto 1: Marcel Ávila (DP)
Foto 2: Zero Hora
Memorial do Sete foca nos oitenta
Imagens: F. A. Vidal
A Santa Ceia, segundo Henrique Amaral
Misturando, inventando ou desconhecendo detalhes religiosos e históricos, o artista local introduz, na cena da ceia judaico-cristã, elementos simbólicos, ingredientes oníricos e anacronismos. Os símbolos coerentes são o número de apóstolos, as cruzes e o signo ictus (no respaldo das cadeiras). Outros simbolismos menos claros dão um ar irreal, como as pirâmides e camelos, em possível relação com o Antigo Testamento. A linha do horizonte cortada sugere uma fragmentação do sentido de realidade, própria dos sonhos.
O ambiente interno lembra um castelo medieval, de gelado chão, grandiosas janelas e duras paredes. Cadeiras modernas, uma enorme toalha de mesa e o que parecem ser pratos individuais são outros anacronismos, que denunciam o ponto de vista histórico do autor. As ordenadas posturas físicas e a distribuição de lugares sugerem atitudes imóveis ou solenes demais para a ocasião; quem seria o mestre se mostra passivo em vez de liderar.
Apesar da inspiração religiosa, o conjunto visual se apresenta como uma imagem surrealista atemporal e convida a uma interpretação psicológica. Enquanto a visão do exterior parece sonhadora e livre, a mentalidade interna se mostra rígida e sem calidez, com sentimentos apagados, o masculino distanciado (líder minimizado) e o feminino deslocado (fora da cena principal). Tudo isto exemplifica como a riqueza pessoal se expressa nas artes plásticas, independentemente do realismo lógico e histórico.
Foto: F. A. Vidal
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
A boa estrela do bom rapaz Wanderley
Wanderley Cardoso está em Pelotas mais uma vez e cantará esta sexta-feira (13) no Restaurante Lobão. A casa abre às 21h e o espetáculo começa às 23h (R$ 100 por casal, incluindo o jantar). Sábado (14), novo show na sede campestre do Centro Português, encerrando o Festival de Queijos e Vinhos (com a vantagem da música do Sovaco de Cobra desde 21h).
Se o bom rapaz cantar "Promessa", de Roberto e Erasmo, poderá ser feita uma comparação com o original de 1966 (abaixo), que saiu no filme Na onda do iê-iê-iê (comédia que foi o início de Renato Aragão no cinema e da dupla Os Trapalhões, que depois virou quarteto).
WC nasceu em 1945, começou a cantar aos 13 anos (número de sorte) e não parou até hoje; foi um dos mais jovens da Jovem Guarda e hoje é um convertido ao gospel evangélico.
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Pinturas de Cláudia Oliveira da Rosa
A Direção de Artes Visuais reuniu dez artistas não selecionados no edital de 2010, considerando que suas obras mereciam um destaque honroso, e a mostra coletiva foi aberta na segunda-feira (9). A exposição segue até 31 de agosto, das 8h às 14h na Prefeitura e de 11h a 17h no Casarão nº 2.
A pintura "Anjo Negro" descreve um menino caído à beira da praia, sendo atendido por um anjo (esq.; clique para ampliar). A julgar pela cor da pele, o anjo seria da mesma raça que o menino, mas outros traços - como o cabelo perfeitamente branco - destacam o lado espiritual por sobre a corporalidade.
Os anjos têm sido pintados com aparência humana e geralmente com detalhes raciais caucásicos, pelo etnocentrismo europeu (querendo sugerir que pessoas de outras raças não tivessem espiritualidade). Ainda vigente, essa descrição "branca" pretende a aproximação - por traços supostamente comuns - entre os anjos, seres espirituais, e os homens como seres biológicos.
Entretanto, o lado sobrenatural costuma ser apresentado pela ausência de sexo e por grandes asas avícolas (simplesmente sugestões de poder flutuar, sem ligação com a terra).
Congruente consigo mesma, a artista empresta ao anjo negro sua característica racial, mas - também reconhecendo sua própria espiritualidade - aproxima o menino e a entidade protetora usando a luz como dado visual, simbolizando a cura do psiquismo e a sanação do sofrimento.
Ao serviço da ideia sociopolítica implícita (não somente os de raça branca têm alma, mas cada ser humano tem seu espírito cuidador), a luminosidade está situada em dois focos: o mental humano, onde as mãos do anjo atuam, e o celestial natural, representado pelo luar e seu reflexo. A sutil e silenciosa relação das duas luzes revelam que o anjo - em última análise, o espírito humano - é representante divino para nosso bem, de acordo à origem da palavra (do grego angelos, mensageiro).
"Urbe" é outro trabalho de Cláudia na mesma exposição (dir.). Representa com traços simples, aparentemente inconclusos, edifícios amontoados numa cidade grande, onde não há caminhos, entradas nem saídas. Nem sequer uma pessoa viva.
Algumas linhas curvas e sem ordem, além do jogo de cores e do claro-escuro, são fatores de mistério e atração que fazem o espectador ficar olhando, interessado e desorientado, esse ambiente caótico que é, no fundo, sua própria cidade e, geralmente também, sua própria vida pessoal. Uma ousada reflexão sobre o urbanismo, do ponto de vista mais subjetivo, como uma tentativa de ordenar e embelezar o caos humano.
Imagens: F. A. Vidal
Memorial do São José não foi conservado
Na portaria, a pergunta pelo memorial causou alguma estranheza; ao parecer a escola nunca recebe visitas turísticas. A recepcionista foi averiguar e num minuto voltou com a segura resposta: o memorial tinha sido constituído exclusivamente para o centenário e logo depois se desfez, devolvendo-se as peças às pessoas que as haviam emprestado. Informação clara e precisa, mas que me deixou decepcionado e estupefato.
Apesar de tantas vivências que pode contar, o São José nunca teve um memorial realmente, nem o provisório se conservaria. Faltaria um lugar de exposição? O modernismo oportunista não toleraria um museu com cheiro de século XIX?
Disseram-me que tampouco existe aqui uma associação de ex-alunos, mas quem quiser pedir informações pode telefonar para a secretaria do colégio. Por outra parte, o anúncio de boas-vindas ainda não foi retirado. Permanece também o novo brasão (dir.), que foi inaugurado com banda de música no sábado 20 de março.
As lembranças reunidas foram somente um flash, como as frases na areia que o mar leva em segundos. Daqui a cem anos, será formada uma nova exposição de memórias? Perder-se-ão no tempo as recordações de 1910 a 2010? Nossos jovens seguirão escrevendo na areia? Mesmo o Twitter deixa registro de tudo.
Love letters in the sand é canção quase centenária, que protesta a favor dos compromissos estáveis (abaixo, as versões de Pat Boone em 1957 e de Gene Austin em 1931). Tradução livre: Costumávamos passar o tempo escrevendo cartas de amor na areia. Tu rias quando eu gritava, cada vez que a maré apagava nossas cartas de amor. Prometeste ser sempre fiel, mas tal promessa foi em vão. Hoje, meu coração dói, cada vez que uma onda apaga cartas de amor.
We passed the time away
Writing love letters in the sand.
How you laughed when I cried
Each time I saw the tide
Take our love letters from the sand.
You made a vow that you would ever be true
But somehow that vow meant nothing to you.
Now my broken heart aches
With every wave that breaks
Over love letters in the sand.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Choque de classes, desrespeito à natureza
Esta tarde, logo após as 16h, um acidente menor chamou a atenção de todos. Sem que ninguém se ferisse, um carro bateu numa charrete de tal forma que o cavalo assustado levou o débil veículo para cima da calçada.
Duas viaturas da Brigada Militar vieram atender o problema e estacionaram no mesmo espaço, atrapalhando ainda mais o trânsito (abaixo). O público observava e comentava. Em minutos, o movimento tinha invadido todo o espaço urbano e as atividades de transeuntes, lojistas e ambulantes.
De um lado da rua transcorria a discussão entre humanos, num conflito social - entre uma classe rica e outra pobre - mediado pelos policiais. Do outro lado, o cavalo esperava pacientemente (acima).
Às vezes os irracionais parecem mais sábios, especialmente quando o urgente "progresso" entra em choque com os sentimentos humanos. E não se trata de querer obstruir a modernidade, em prol da natureza primitiva, mas simplesmente uma questão de compreensão e respeito, coisa que muitos humanos desconhecem.
Fotos de F. A. Vidal
Referências femininas à cultura de Pelotas
Sob o título "Referências", as imagens colocam, em primeiro plano, mulheres em relação com a cultura de Pelotas, representada simbolicamente pelos ladrilhos hidráulicos, a pelota, a agricultura, o Laranjal, o Grupo Tholl.
Na tela "Sustentando o Patrimônio" (acima), a mulher mostra prédios do século XIX, numa corda que serve de alegoria para a valorização afetiva da arquitetura herdada dos europeus. Mais perto da mão esquerda, o antigo Teatro Sete de Abril (dir.), que já passou por diversas reformas desde sua abertura oficial em 1834, e hoje se encontra fechado à espera de mais uma reparação.
"Que se chamasse Pelotas, feito um barco e feito um rio" (do poema de Mário Osório Magalhães) é o título do quadro (esq.) que evoca o nome original da localidade, ligado ao Arroio Pelotas ou "das Pelotas", aquelas pequenas embarcações esféricas que tanto impressionaram os portugueses. O poema aludido foi escrito em 1999 para a abertura do ballet moderno de Otávio Augusto Lima "A Flor do Sal".
Tanto na escultura como nas telas pintadas, Graça Antunes costuma apresentar mulheres como personagens, especialmente gordas, valorizando a sensualidade corporal e a delicadeza dos traços faciais. De diversas raças, estas mulheres dialogam com a cultura pelotense, seja como agentes ativas (no artesanato indígena ou na música africana), contemplativas ou como simples adornos.
Na história oficial, o homem é protagonista único do desenvolvimento pelotense, mas cabe reconhecer o ser feminino, pois sem os dois sexos nenhuma cultura existiria e sem os dois lados nenhum ser humano existiria.
Em nossa história, houve mulheres benfeitoras ao lado dos patrões e, do outro lado, escravas contribuindo com a vida e a arte. Mulheres plantaram e colheram, cantaram e esculpiram, construíram pelotas e tijoletas. Tais os atos valorizados pelos homens.
Vem agora a artista recordar-nos que a mulher não é somente empresária ou trabalhadora, mas essencialmente presença amorosa, biológica e espiritual, não percebida pela ambição masculina.
Os pêssegos e suas formas, texturas e colorações sensuais foram colocados aqui ao lado dos pés femininos (esq.). A pelota semelha um útero. A praia é a mãe-esposa que espera e acolhe os navegantes. O feminino é silencioso e está em tudo.
Fotos de F. A. Vidal
Referência de M.O.Magalhães: "Os passeios da cidade antiga" (2ª ed., 2000)
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
Opção pela vida (conto)
Estava sozinho no modesto escritório de sua casa simples. Por cima da escrivaninha, em desordem, entre vários “santinhos” de sua candidatura a deputado estadual, recortes de jornal, lápis e canetas. Sobressaindo naquela desarrumação toda, uma pilha de contas a pagar, resultante da campanha política que enfrentara: tipografias, açougues, pintores de parede, muita tinta, gasolina, aluguel de carros; eram muitas dívidas. O candidato olhava para aquilo tudo com uma profunda sensação de desalento e tristeza. Àquela hora – 17 – nove horas após o início da apuração, obtivera apenas 14 votos. Além de tudo, estava envergonhado. "Como vou poder sair à rua?", perguntava-se.
Na primeira gaveta do móvel, um Smith & Wesson 38, cano longo, carregado; como uma desvairada sugestão para terminar com aquela aflição toda. Já estava considerando aquela hipótese trágica.
E recapitulava: “Não pode ser! E o churrasco que dei para 400 pessoas? E o carreteiro, no clube de futebol, apinhado? É incrível!” Com dedos nervosos somou as contas, na pequena máquina de calcular de plástico que comprara de um camelô: 257 mil! Sem contar os táxis para amigos, remédios que pagara de seu bolso para eleitores e outras pequenas despesas. “Não tenho saída”, monologou baixinho, rosto pálido. “Estou liquidado”, completou. ”Como irei me reerguer se apostei tudo nesta maldita eleição? Onde será que errei?”, se perguntava angustiado.
Seus olhos passearam pela arma como uma sugestão imóvel no fundo da gaveta. Desligou o rádio, que já não falava seu nome há mais de uma hora. Levantou-se e fechou o postigo. Aquilo era o fim... pensou. Com os dois braços afastou nervosamente tudo que estava sobre a escrivaninha e descansou a cabeça. Na intimidade do quarto, chorou convulsivamente. Repousou sua mão trêmula sobre o revólver, até então estático na gaveta. Levantando-o lentamente, deparou-se com um envelope rosa e perfumado embaixo da arma. Mão ainda trêmula, repousou de novo o instrumento de morte na gaveta.
Abriu aquele envelope, que nem lera, tal a agitação em que vivera nas últimas semanas. Tratava-se da carta de uma “coroa” cheia da nota, mas, desculpem, era de uma feiúra de fazer dó. Possuía inclusive bem nutrido buço, mas se engraçara com a figura de nosso herói, quando a colagem de suas fotos-propaganda começara nos postes e muros, havia dois meses. Não a conhecia pessoalmente, mas ela mandara o número de seu telefone e uma foto de corpo inteiro – a audácia! – e enquanto confessava um amor incendiário, estrategicamente, anexou à carta uma (muito boa) declaração de bens, junto com a de amor.
O rosto do candidato derrotado iluminou-se. Com um gesto brusco e eufórico, devolveu o revólver para o fundo da gaveta, chaveando-a, ao mesmo tempo que iniciava uma corrida em direção ao telefone, a fim de discar o número grifado naquela carta salvadora.
Acabara de optar pela vida.