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sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O momento do novo é o silêncio


Primeira caminhada de 2016. As ruas estão desertas. A cidade brinca de morrer. Ainda se pode ouvir, na distância, o ruído do ancião que se afasta e nada lembra o foguetório de algumas horas atrás, coroando os instantes em que o sorriso, os abraços, os carinhos e o espoucar das rolhas dos champanhes definiam o estante da transição do velho para o novo.

Mas é na solidão, seguida de uma reflexão, que sentimos dentro de nós as mudanças internas e não apenas a troca de calendário. Não se trata de uma crítica às reuniões familiares. Elas são necessárias e importantes. Desejo, apenas, dar ênfase à necessidade de momentos de fuga, quando ficamos dentro de nós, quietinhos, refletindo, sentindo as mudanças, experimentando o novo cenário que se desenha. Um cenário gestado na alma e que se espalha pelo corpo, suavizando os batimentos cardíacos, relaxando os músculos, dando aos pés impulsos em demanda do novo.

Cruzo com um cão vadio e de olhos brilhantes. Ele também, parece-me, entrou num ano novo. A vadiagem matutina atrás das sobras do reveillon dão a ele renovado vigor.

Gosto do silêncio da cidade, que parece boiar num vácuo concebido pelos sonhos. É quando penso no que pintar, no que escrever. Caminho mais um pouco e volto para casa. O segundo ato da passagem está por ser escrito. Um bom dia a todos. Que 2016 seja o resultado de nossas reflexões.

Manoel Soares Magalhães
Fonte: Facebook

sábado, 26 de setembro de 2015

O mendigo que lia revista em quadrinhos


Ele “morava” sob uma marquise. De poucas palavras, vivia do que lhe davam – e eram poucas coisas. O de comer, o de vestir e o de sentir (no coração), quase nada. No olhar – fugidio – um secreto desespero, segredos há muito engolidos e não digeridos.

Nas proximidades, um supermercado, de onde eu comprava, de quando em quando, algo para lhe dar. Não era sempre – para que ele não se acostumasse. Na verdade, uma cretinice minha, pois o que ele queria mesmo era distância de nós, os ajustados (ao menos na aparência).

Hoje pela manhã, ao dirigir-me ao centro pelo mesmo trajeto, disposto a dar algo para o mendigo, percebi que ele não estava – e o certo era vê-lo ali, como cotidianamente acontecia. Levantara acampamento, quem sabe à procura de outra zona da cidade, outra marquise, outras pessoas, melhores ou piores.

Deixara para trás uma garrafa pet, um saco de plástico com restos de pão... E uma revista de história em quadrinhos.

Lembro-me de que ele nos últimos dias lia algo com muita atenção. Quando as pessoas se aproximavam dele, tratava de esconder o que estava lendo. Àquele momento, a caminho do centro da cidade, parei e observei a razão que levara o mendigo a alhear-se do entorno.

Preferira mil vezes a revista infantil – que o remetia ao passado, quem sabe mais feliz – à realidade em derredor, tão triste e melancólica quanto ele. Um mistério, porém, parece-me insolúvel.

Por que ele fora embora e deixara para trás a revista infantil?

Esta pergunta talvez não seja respondida – ainda que ele retorne à sua “toca”, à entrada de uma garagem – pois é de pouquíssimas palavras. Fotografei a cena, espécie de palco de uma pantomima triste, cujo personagem o abandonara. Sem ele, sem a presença humana, aquele pedaço de concreto ficou ainda mais triste e deprimente.
Manoel Soares Magalhães
Texto e foto: Cultive Ler, 22-12-2011

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A Seleta inspirou gerações (crônica)

O escritor Manoel S. Magalhães (esq.) suspendeu a edição do blogue Cultive Ler, no qual, há uns 4 anos, publicava textos seus e de comentaristas da atualidade. Mas não parou de escrever; até mesmo intensificou a produção de crônicas, que darão em novo livro, desta vez com caráter memorial, muito valioso para conhecer também a história e os costumes pelotenses. 

A seguinte crônica, tomada de sua página no Facebook, se refere a um livro que marcou a infância do autor, "Seleta em Prosa e Verso", que o professor gaúcho Clemente Pinto organizou, em 1883, com trechos selecionados, e que educou gerações de brasileiros ao longo do século XX. A seguir, confira um desses trechos, escolhido por Manoel: "O apólogo das árvores", compilado pela "Seleta" de um dos sermões do Padre Antônio Vieira.


A Seleta apareceu em 1883.
Em 2001 saiu a 59ª edição (leia trechos).
Meu livro de cabeceira, quando pequeno, era "Seleta em Prosa e Verso", organizado por Alfredo Clemente Pinto (1854-1938). Decorei-o inteiramente, para surpresa de meus pais. Eu andava para baixo e para cima com o volume, praticamente em frangalhos. Lia-o de pé, sentado, correndo, nadando e voando...

Quando ganhei de presente História das Invenções, de Monteiro Lobato, deixei a Seleta numa espécie de nicho, aos pés de minha cama. De quando em quando eu a ele retornava, relendo as partes que mais me interessavam – que eram muitas, aliás. A obra de Monteiro Lobato me interessou muito, pois relatava a experiência dos mais fantásticos inventos.

O livro de Alfredo Clemente, todavia, era para mim o primeiro amor literário. E os primeiros amores, sejam eles quais forem, não são esquecidos jamais.

Lembro-me das noites de inverno, quando sob a luz dançante do lampião, ouvindo o vento confessando-se às árvores, eu ia lendo em voz alta as passagens mais interessantes. Tudo em volta silenciava para ouvir as narrativas.

Ainda hoje, embora tenha à disposição boa e eclética biblioteca, sou impulsionado a pegar a Seleta e correr os olhos pelos textos, acarinhando as páginas, a capa, a lombada... Sinto-me como se viajasse no tempo, voltando aos primeiros anos, retornando à época das ilusões, das construções das utopias, da engenharia dos mais improváveis sonhos... E tudo parece realizável, pois o retorno à meninice talvez seja a melhor maneira de acarinhar a abandonada mônada – o nosso verdadeiro ser.

Costumo dizer, para o espanto de muitos amigos, que a felicidade para mim tem cheiro... Cheiro de livro, de livro velho... Quanto mais velho, melhor. Não preciso dizer-lhes, após esta confissão, que o paraíso é tangível, sim... Bem terreno, ao alcance de nossas mãos.

Quando entro num sebo e pego determinado livro, levo-o, incontinenti, ao nariz. Quando dou sorte, o cheiro que o volume exala me conduz ao passado... Vejo-me outra vez sob a chama do lampião lendo o velho e carcomido volume da Seleta em Prosa e Verso. Respiro fundo e me sinto absolutamente vivo. E feliz!
Manoel Soares Magalhães
Facebook, 31-12-14


O apólogo das árvores
da Seleta em Prosa e Verso

O primeiro apologo que se escreveu no mundo (que é fábula com significação verdadeira) foi aquelle que se refere a Sagrada Escriptura no capitulo 9 de Juizes.

Quizeram, diz, as arvores fazer um rei que as governasse, e foram offerecer o governo à oliveira, a qual se escusou, dizendo que não queria deixar o seu óleo, com que se ungem os homens e alumian os deuses. Ouvida a escusa, foram à figueira, e também a figueira não quis acceitar, dizendo que os seus figos eram muito doces e que não queria deixar a sua doçura. Em terceiro lugar, foram à vide, a qual disse que as suas uvas, comidas, eram o sabor e, bebidas, a alegria do mundo; e a quem tinha tão rico patrimonio não lhe convinha deixa-lo para se metter em governos [versículos 8-13].

De sorte que assim andava o governo universal das arvores, como de porta em porta, sem haver quem o quizesse. Mas o [que] eu noto nestas escusas é que todas convieram em uma só razão, e a mesma, que era não querer cada uma deixar os seus fructos. E houve alguem que dissesse ou propuzesse tal cousa a estas arvores? Houve alguem que dissesse à oliveira que havia de deixar as suas azeitonas, nem à figueira os seus figos, nem à vide as suas uvas? Ninguem. Somente lhes disseram e propuzeram que quizessem acceitar o governo.

Pois, si isso foi só o que lhes disseram e offereceram, e ninguém lhes falou em haverem de deixar os seus fructos, por que se excusam todas com os não quererem deixar? Porque entenderam, sem terem entendimento, que quem acceita o governo dos outros só há de tratar delles e não de si; e que, si não deixa totalmente o interesse, a conveniência, a utilidade e qualquer outro gênero de bem particular e próprio, não póde tratar do commum.

Autor: Pe. Antônio Vieira (1608-1697)
do Sermão da Vigésima Segunda (v. parágrafo VI)
Fotos: MariMoon, Sebo do Messias

domingo, 11 de janeiro de 2015

No escurinho de nós mesmos (crônica)

Melanie Nunes Fronckowiak escreveu algumas crônicas para o Diário Popular, antes e depois de se converter em celebridade internacional (confira uma de 2007: A eficiência do 0-800). 

Após deixar pela metade o curso de Jornalismo na UCPel, ela já foi modelo, Miss Rio Grande do Sul, Miss Bumbum Internacional, atriz de novela na TV Record, cantora pop. Tudo isso em menos de dez anos (veja a história dela no post Melanie Fronckowiak, de modelo a ídolo). Hoje ela é apresentadora na TV Band, noiva de Rodrigo Santoro, autora de um livro de poemas, e ainda planeja ser mãe em 2015.

Numa de suas crônicas mais recentes, Melanie faz um paralelo entre a penumbra de uma sessão de cinema, propícia para o amor a dois, e o invisível "escurinho" da intimidade pessoal, chave para o amor a si mesmo. Saiu no Diário Popular no sábado 22 de março de 2014.


Cinema. Sessão do meio da tarde. Filme ruim. Entro com a minha tradicional água com gás e um pacotinho de balas de iogurte.

Acho o hábito do cinema solitário genial. Ninguém para comentar alto sobre o filme ou para remexer os pacotes de plástico até conseguir enfim chamar atenção. Nada de vergonha alheia muito próxima de você.

O único problema disso é que sempre há alguns outros solitários que acham que essa é uma grande oportunidade de encontrar uma alma gêmea. Outro alguém que também vai ao cinema sozinho, não necessariamente por opção, e fica te olhando como quem diz: "E aí? Que tal juntarmos a nossa autossuficiência nesse escurinho desacompanhado e refrigerado?"

De verdade, vou ao cinema sozinha, porque acho a minha companhia ótima e porque é incrível não depender de ninguém para fazer coisa nenhuma. Mas nessa tarde o cinema era praticamente meu. Um casal de idosos estava sentado bem no meio da sala. E eu aproveitei a intimidade estabelecida pela quantidade de pessoas e fiz a linha "civilizada no elevador", compartilhando um simpático "Boa tarde", que foi devolvido com a mesma educação, sem considerar uma dosagem de espanto. A educação anda como o tomate, há alguns meses, inflacionada no mercado, enquanto antipatia e grosseria estão sempre em promoção.

Percebi que o casal comemorou a minha presença e depois entendi o porquê. O senhor fazia contas, "faltam mais dois", ele tentou sussurrar. Confesso que nem sabia que havia um mínimo para que o filme pudesse ser rodado. Mas, aparentemente, dentro do conhecimento dele, ainda precisávamos de mais duas pessoas. E ele foi fazendo a contagem, até que relaxou e percebeu que a programação daquela tarde estava garantida.

Depois continuou outros assuntos com a esposa. Ele falava alto, por mais que achasse que falava baixo. Quase um sussurro teatral, absolutamente audível e um pouco cômico, considerando a pequena quantidade de pessoas na sala do cinema. Falou de uma tal de Márcia, que andava de mal com um tal de Vítor. Teve uma crise de tosse, outra de riso. Ou uma de tosse e riso, mais ou menos combinadas.

— Quanto ele vai levar para se atrever a me beijar?
— Levei metade do filme mas finalmente pude pôr o braço.
Ao longo do filme o papo continuou amimado, comentavam, palpitavam alto sobre o futuro dos protagonistas, era como se estivessem em casa. Eu, obedecendo pateticamente o lugar marcado, estava sentada mais atrás e podia acompanhar a movimentação. A verdade é que o filme era péssimo (o que justificava a sala bastante vazia) e o casal de senhores tornou-se muito mais interessante.

Em certo momento, e não me perguntem o que acontecia na telona, observei o homem passando a mão em volta dela, acomodando seus cabelos grisalhos no seu peito. Pude ver pela silhueta iluminada um beijo carinhoso, antes de um novo ataque de tosse brusco e para o lado oposto.

Fiquei pensando no meu hábito solitário de frequentar salas de cinema quase vazias. E em como, na verdade, existem grandes personagens e suas vidas sentadas nas poltronas. A vida de quem vive pode ser tão mais interessante do que as histórias. Nós é que esquecemos de amparar o olhar nas frestas da realidade.

Foi a primeira vez que senti solidão num momento como esse. Não queria alguém para escorar a cabeça, queria um peito para escorar a vida e a história compartilhada em anos de caminhada conjunta. Queria alguém que respeitasse o meu silêncio e o escuro que carrego (todos carregamos) dentro de mim mesma. Não senti falta de companhia, mas de estar acompanhada. Que é parecido e, ao mesmo tempo, totalmente diferente. No primeiro, temos alguém por perto. No segundo, temos alguém por dentro. E dois num cinema escuro, viram um só. O amor é a arte de duvidar da matemática.

Mel Fronckowiak


"Flagra" (1982), trecho do DVD "Multishow ao Vivo Rita Lee"

Fotos: Facebook (1), NaTV (2), Pó de Giz (3)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O lampião fazia o silêncio falar (crônica)

O silêncio é bom filósofo. E conselheiro. Em uma sociedade barulhenta como a nossa, a maioria das pessoas sentem-se desconfortáveis com ele. Geralmente deseja comunicar-se com nosso interior, com o intuito de ouvir-nos e recomendar-nos instantes de reflexão. Entretanto, fechamo-nos a ele, ouvidos atentos ou não aos ruídos característicos da vida contemporânea.

Confesso-lhe, amigo leitor, que gosto muito do silêncio e de estar em silêncio. Criei-me numa zona da cidade onde à noite ouvia-se claramente o coaxar dos sapos nos charcos, o estalar da madeira da casa, o piar da coruja, o vento confessando mistérios às árvores e outros fenômenos causados pela falta de barulho.

Tudo isso reforçado pela luz do lampião a querosene, aumentando o sossego e diminuindo a fronteira entre o visível e o invisível. À noite tudo me parecia mágico.

À cabeça do menino que fui, havia a certeza de que a quietude causava a magia que se desenrolava à minha volta. Sem pressa, quase como num ritual, pegava lápis e papel na tentativa de relatar as sensações oriundas do momento. O relato, em letras praticamente ilegíveis, ia brotando de meu interior, aquecendo-me o peito, tornando o silêncio absurdamente palpável.

Hoje, ao sentir-me sacudido pelas inquietações, fecho os olhos e tento materializar a mesma paz. Aos poucos sobrevém o sossego, o coração se desacelera e sou capaz de ouvir, de forma tímida inicialmente, a sinfonia dos sapos, o piar da coruja, o segredar do vento às árvores, o estalar de tábuas...

E no fundo dos olhos brilha a chama do lampião.
Manoel Soares Magalhães, 19-12-14


Tenho boas recordações do Natal, sobretudo os de minha infância. Tudo era muito simples, a começar pelo presépio, que à noite, iluminado pela chama do lampião a querosene, assumia proporções mágicas. Para tornar tudo ainda mais encantador, eu colocava as mãos à frente da trêmula chama, projetando na parede, perto do presépio, bizarras figuras, que voavam ao redor do berço onde o menino Jesus, recém-nascido, dormia. Eu as observava, dando-lhes estranhos nomes. Gifaboi, mistura de girafa com boi; formicão, cruza de formiga com cão; gapeixe, mescla de gato com peixe e tantas outras.

Na rua, os ruídos característicos da noite, enxameada pelos vaga-lumes. Eu adormecia na janela, vendo-os desenharem na escuridão exóticas geometrias. Triângulos, retângulos, hexágonos, pentágonos, losangos e heptágonos... Figuras que eu conhecera num velho livro de geometria.

À meia-noite, ou pouco antes, tomávamos Coca-Cola e comíamos sanduíche. Acaso estivesse quente, costumávamos ficar debaixo da parreira, em silêncio, ouvindo o escuro.

Para quem não sabe, o escuro fala, sim. Dava-nos conselhos e contava histórias... Narrativas antigas de heróis, santos e santas, reforçadas pelo murmúrio do vento na copa das árvores.

Às vezes o escuro se calava, levando-nos a escutar nossos corações, a perceber o marulho do sangue nas artérias... Se ele não voltasse a falar, íamos dormir. E tudo isso aconteceria no próximo Natal. E no seguinte.

Certa noite, porém, a luz elétrica inundou a casa, dissipando de vez as figuras das paredes, calando também o escuro. E o lampião, que tanta fantasia engendrara, ornando as noites, apagou-se para sempre.
Manoel Soares Magalhães, 24-12-14
Fonte: Facebook
Imagens da web

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Cadeiras aquarianas

A crônica "O silêncio das cadeiras" faz parte do livro "Rastros num Caminho: jogos de ficção e realidade", de José Luís Marasco Cavalheiro Leite, publicado em Pelotas pela Satolep Press (2013), com ilustrações de Pedro Luís Marasco da Cunha.

A assembleia de ouvintes desaparece sob o ruído das tertúlias.
Ali estão elas em repouso.

Cumpriram, mais um dia, o papel que lhes incumbia (a causa final de suas existências): sustentar corpos, que sustentam cabeças, que sustentam ideias.

Ficam, de regra, reunidas em torno de mesas, onde se formam grupos de pessoas que falam dos mais variados assuntos.

Suportam pesados corpos que, às vezes, carregam pesadas consciências. Ouvem tudo o que ali se diz; sabem de paixões, de traições, de amores espúrios, são testemunhas de mirabolantes teses científicas, também das mais chulas impressões (geralmente pronunciadas acerca de mulheres que desfilam nas calçadas, vistas através das amplas vitrines que circundam o espaço onde se espraiam).

Veem, com frequência, manifestarem-se infidelidades a acertos políticos trabalhosamente costurados. Conhecem inúmeras declarações de compromisso que, no dia seguinte, já estarão esquecidas. Flagram insinuações de interesse amoroso, de onde jamais se poderia esperar que brotassem. Já viram inusitadas aproximações e mais de um comprometedor roçar de pernas.

Ante a infinita paciência das cadeiras,
todas as opiniões são relativas.
Praticamente, sabem de tudo o que se passa na cidade e mesmo no mundo. Afinal, ali, onde elas habitam, se faz, diariamente, em um grupo ou outro, o resumo dos acontecimentos locais, nacionais e internacionais.

Já conheceram planos de paz para o Oriente Médio. Ouviram veementes acusações às interferências americanas no Afeganistão. Houve quem infundisse nelas sentimentos de ódio a ditadores árabes, e, já, em outro momento, assumiram um ânimo de revolta, em face de exortações veementes, contra as sempre tendenciosas resoluções das Nações Unidas.

Perceberam também a relativização de julgamentos sobre fatos. No geral – sabem elas bem –, o aficionado por um time ou por uma grei partidária sempre desculpa nos seus o que não perdoa nos outros.

São, seguidamente, arrastadas de uma mesa a outra, o que lhes rouba, em tais ocasiões, a possibilidade de formar um juízo melhor sobre o assunto que, antes, estavam apreciando. Pior, em alguns casos, no novo grupo formado, ocorre de virem a tomar conhecimento de argumentos inteiramente dissonantes aos que, no anterior, ouviam.

Refletem sobre a relatividade de tudo e chegam a admitir que, afinal, ninguém tenha razão sobre nada.

Confundem-se. Têm sobradas razões para pensar que as teses que ouvem, notadamente quando se prendem a questões locais, estão profundamente vinculadas a interesses que, vez e outra, acabam sendo mencionados às claras.

Sem cadeiras que suportem debatedores,
não há contraditório nem especulações.
Algumas, menos contidas, imaginam quão interessante seria interferir nos assuntos que ouvem. Criariam – parece-lhes certo – a maior confusão: desmentiriam fatos, provocariam desacertos e inimizades, revelariam segredos, anunciariam paixões insuspeitadas...

Talvez, porém, se assim fizessem, desmanchariam a atração que aquele lugar exerce sobre tantos: um centro de prosa descomprometida, um parlatório democrático, uma tribuna aberta à palavra de qualquer pessoa, um lugar do contraditório, da discussão, um espaço tanto para a divergência como para a convergência, um recanto próprio para expressar paixões.

Para tantos, também, um refúgio em face da dureza da vida doméstica, com suas desavenças, desencontros e malquerenças. Para outros, bem ao contrário, o preenchimento do amargor da falta de  uma vida doméstica. Um lugar para deixar o tempo passar...

Ao fim do expediente, já noite alta, aguardam, em providencial e indispensável silêncio, a limpeza do lugar para a rotina de outro dia, no qual tudo se repetirá, como ocorre há décadas naquele tão essencial recanto pelotense, o institucional Café Aquário.
José Luís Marasco Cavalheiro Leite

Dentro, a instituição. Fora, a curiosidade.
Imagens: M. Soares (Facebook) e reprodução da obra citada

sábado, 25 de outubro de 2014

Formação para o servidor político

Em fins do século passado, o antigo candidato a presidente Enéas Carneiro (1938-2007) desfazia das motivações dos políticos (vídeo abaixo), enquanto os jornalistas tentavam fazê-lo retratar-se de sua exigente postura ética. Hoje em dia, já é difícil lembrar o que seja a prática dos bons valores na política, na educação e na convivência.

Há precisamente dez anos, a ponto de realizar-se uma eleição municipal em todo o Brasil, o professor e artista Luiz Vasconcellos publicou o artigo "Pouca ou muita vergonha?", questionando o perfil de capacidades dos candidatos à Câmara de Pelotas e propondo uma melhor forma de selecioná-los. O mesmo poderia aplicar-se ao resto do Brasil.


Pouco antes da eleição municipal seguinte (2008), o jornalista Eduardo Lima Silva voltou ao tema da formação dos políticos, destacando que 30% de nossos candidatos somente "lê e escreve", quando se define seu nível educacional. Confira abaixo as reflexões.



Pouca ou muita vergonha?

Tenho alguma experiência em avaliação de cursos profissionalizantes: perfil de conclusão, postos de trabalho, estrutura curricular, conteúdos, competências e habilidades. Esta eleição [municipal] me fez pensar na qualificação profissional de um vereador... quais são os conhecimentos e aptidões que alguém, que quer representar e atuar em favor de sua comunidade, deve possuir?
  1. Letras
    Com certeza conhecimentos aprofundados de português, gramática e literatura para se expressar de forma correta e poder redigir projetos e proposições. Saber de constituição, legislação, código civil, alçadas e responsabilidade de cada poder é pressuposto óbvio.
  2. Números
    Noções básicas de matemática aplicada para entender de orçamentos, licitações e destinação de dinheiro público, são também bastante importantes.
  3. Valores
    Ética, moral e consciência cidadã deveriam ser estudadas e debatidas, para se ter uma atitude condizente com a postura de agente popular.
  4. História
    Uma disciplina fundamental seria história da política, mundial, nacional e local, para uma visão ampliada e referenciada do trabalho a ser feito.
  5. Mentalidade
    Psicologia aplicada ajudaria a entender os anseios de seus eleitores e poder tratá-los de forma profissional e dedicada e sem aquele falso paternalismo tão comum.
  6. Atualidade
    No mínimo, aquela cultura básica de ler livros e jornais e saber discutir assuntos de forma consciente e bem posicionada. 
    Agora... sendo obrigado a assistir este desfile de candidatos à Câmara Municipal, pergunto: qual a porcentagem dos candidatos que têm este perfil mínimo? Dez por cento... é muito!

    Sem preconceitos com meus concidadãos, questiono de forma veemente as nominatas que as coligações nos apresentam. "Vergonha" é um termo brando, esquálido e singelo para o que se tem visto e ouvido.

    Culpo os partidos e seus caciques locais, que usam de um expediente espúrio para aumentar os votos na legenda. Permitem que pessoas sem a menor condição de representar o povo de maneira digna e competente, subam ao palanque da tevê para dizer absurdos, falar do que não conhecem, prometer o que não podem.

    Cabos eleitorais se submetem ingenuamente à chacota de seus amigos e vizinhos. Alguns sabem que não têm chance de se eleger, mas ficam na esperança da participação futura em alguma "boquinha", perpetuando uma das mais nocivas práticas politiqueiras.

    Infelizmente, este tipo de procedimento está arraigado em nossa cultura política, desmotivando os jovens e aqueles que sonham com um futuro melhor para sua cidade. Vamos denunciar e exigir mudanças nesta forma desonesta de se tratar a política.

    Luiz "Minduim" Vasconcellos
    Diário Popular, 30-09-2004


    Uns às urnas, outros às aulas

    Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar à escola. 

    Essa frase circula pela rede mundial de computadores entre as chamadas “pérolas de vestibulares” – respostas engraçadas ou sem lógica. Contudo, o indeferimento por analfabetismo de algumas candidaturas no atual processo eleitoral concedeu algum sentido a essa sentença. É o caso que envolve seis pretendentes ao cargo de vereador em municípios da Comarca de Taquari e outros sete no Estado, que aguardam julgamento do Tribunal Regional Eleitoral gaúcho.

    A epígrafe adquire força porque o posicionamento do Judiciário significa a oportunidade de que esses cidadãos retornem às aulas. Ao invés de seguir o caminho das urnas, que pode levar à Câmara de Vereadores, nos próximos quatro anos eles terão a chance de voltar para a escola. E vão precisar.

    O teste de alfabetização no qual foram reprovados consistia em dois ditados, um com seis tópicos e outro com o trecho de uma crônica. Além disso, os candidatos deveriam preencher seus dados pessoais como nome, data de nascimento e profissão. Ou seja, precisavam dar uma pequena prova que sabiam escrever. Mas não conseguiram.

    O número de analfabetos flagrados entre os registros de candidaturas é ínfimo. Porém, o que deveria causar mais preocupação são os 6.644 disputantes cujo grau de instrução se resume a ler e escrever. Eles representam quase 30% do total no Rio Grande do Sul. Em princípio, todos habilitados a passar em um teste primário de escrita, mas talvez incapazes de exercer uma das principais atividades legislativas: representar a população na avaliação de projetos de lei.

    Para tanto, mais do que ter a aptidão para enfrentar um ditado, é preciso ser capaz de compreender um texto escrito. Caso contrário, se está sujeito a decidir sobre o que não entende ou ser manipulado por interpretações de terceiros.

    Em uma reforma política séria, critérios que definam melhor a forma de verificar o grau de instrução dos candidatos deveriam ser estabelecidos. Sugere-se lembrar o que dizia Mario Quintana: "Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem". Incluem-se aí também os que não entendem o que leem.

    Discriminação? Não. Sempre será uma oportunidade para eles irem à escola.

    Eduardo Lima Silva
    Jornalista e perito criminalístico
    Diário Popular, 28-8-2008
    Imagem: Facebook

    domingo, 1 de junho de 2014

    Atrás da vidraça do sábado, artista recria o mundo


    Olhei pela janela e vi um sábado vestido de luto.

    Nesses dias, quando guri, passeava pelo quintal sentindo falta do sol desenhando sobre as folhas mortas. Deixava-me levar por aquele grafismo colorido, tentando descobrir algo inusitado.

    Eu não sabia precisar o que estava procurando. Não tinha cabeça para isso, pois a idade era tenra demais. Ainda assim procurava...

    Acaso encontrasse o que estava buscando, punha-me a desconstruir.

    Sim, quando pequenos, ao contrário do que imaginamos, somos seres da desconstrução. Desconstruímos o mundo para criar o nosso, muito particular, com seu colorido próprio, com seus vãos e desvãos, com seus mistérios e horrores.

    Bem, acaso o dia fosse sombrio e não havia sol para criar e eu para descriar, voltava para dentro de casa. Melancólico, experimentando sensações de abandono, punha-me à janela e ficava divisando o quintal através da vidraça. Embaçava-a e com o dedo indicador elaborava desenhos, com intuito evidente de materializá-los no quintal, arranjando brincadeira.

    Os desenhos, entretanto, logo se desfaziam. Eu tratava de embaçar outra vez a vidraça, tornando a riscá-la. Quando cansava da brincadeira, jogava o olhar ao léu, imaginando coisas.

    Coisas, portanto, se materializavam no quintal, logo se decompondo, pois são frágeis demais. (Como a vida). Mais frágeis que as teias e aranha que qualquer vento, divertindo-se, desfaz.

    Pois a manhã sombria deste sábado levou-me ao passado. De súbito me enxerguei guri, dedo indicador percorrendo o vidro, fazendo desenhos.

    Afinal, pensei, já que não havia sol para desenhar, resolvi transformar-me no artista, deixando na vidraça a frágil arte de um guri que não sabe o que fazer do seu tempo, já que vive não vivendo.

    Manoel Soares Magalhães


    Texto: Cultive Ler
    Imagens: TecnoarkA.F. Balbi

    quinta-feira, 13 de março de 2014

    Um Príncipe chamado Exupéry

    O piloto francês viajou pelo Brasil em voos diários.
    Companhia Mútua de teatro e animação, atualmente estabelecida em Itajaí (SC), foi fundada em 1993 e pesquisa o teatro de animação desde 2002, além de dedicar-se ao clown, à pantomima e à narrativa cênica. Os integrantes principais são Mônica Longo e Guilherme Peixoto.

    Um de seus 6 espetáculos, “Um príncipe chamado Exupéry” [pronúncia aproximada: ekzu-perrí], está numa maratona de apresentações iniciada no Rio Grande do Norte, algumas das quais acompanhadas de oficinas de animação teatral de bonecos. O Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2012, do Ministério da Cultura, viabiliza a turnê.

    A obra se baseia na vida de Saint-Exupéry e no seu  livro "O Pequeno Príncipe" (v. Wikipédia), publicado originalmente em 1943, nos Estados Unidos, em inglês e em francês. O autor se encontrava no exílio desde 1940, após ter participado como piloto francês ante o ataque alemão, na Segunda Guerra Mundial.

    No Brasil, a primeira edição do famoso romance é de 1945. Na época, a França estava em ocupação e a edição saiu somente em 1946 (v. artigo "O Pequeno Príncipe"" completa 70 anos).

    No Rio Grande do Sul, a Companhia está visitando 4 cidades, cuidadosamente selecionadas: Caxias de Sul (11-3), Pelotas (hoje quinta 13-3), Porto Alegre (dias 15 e 16) e Passo Fundo (19).

    Companhia Mútua é fiel à história dos personagens.
    A decisão foi apresentar-se precisamente em cidades brasileiras onde, conforme os integrantes e colaboradores pesquisaram, Saint-Exupéry entregou cartas como piloto da Companhia de Correio Aéreo Aéropostale, nos anos 20 e 30, desde Natal (RN) a Pelotas (RS).

    Dentro de um hangar construído no teatro, sem uma única fala, é encenada a peça “Um Príncipe Chamado Exupéry”, com capacidade para 60 pessoas e destinada ao público adulto. Desde 2010, a montagem já circulou por 15 estados, participou em festivais de teatro de animação e foi indicada pela Revista Bravo como melhor espetáculo, em fevereiro de 2013.

    Em Pelotas, serão feitas duas apresentações no Tablado da UFPel (Almirante Tamandaré 275, com Alberto Rosa), às 19h e às 21h. A produção local é de Alexandre Mattos ( 8116 0377).

    Manoel Jesus

    Pois é uma pena que os pesquisadores tenham achado e recuperado, ao sul da França, os destroços do avião de Saint-Exupéry, o pai do Pequeno Príncipe. Ainda bem que não encontraram seu corpo, ou o que dele deve ter sobrado, já que ficou submerso desde julho de 1944 - cerca de 60 anos - quando o piloto francês deixou a Córsega para uma missão de reconhecimento da mobilização das tropas alemãs, em continente europeu.

    Na verdade, verdade pura, que é a verdade da imaginação, sempre acreditei que, num determinado momento, antes do final, o Pequeno Príncipe (aquele que caiu na Terra, encontrou um aviador e procurava um amigo) apareceu junto ao ombro de Saint-Exupéry, espiou para fora e, vendo a tempestade que se aproximava, disse:

    O mítico Antoine de Saint-Exupéry, autor e personagem
    – Tens certeza que não queres voltar comigo para o meu planeta?

    O aviador sorriu e perguntou se ele tinha uma outra rosa em seu pequeno mundo. Entre perplexo e surpreso, o garoto disse:

    – É bem possível que sim. Faz tanto tempo que estou longe de casa!

    E partiram. Mergulhando nas águas do Mediterrâneo, procurando uma tumba silenciosa e o melhor caminho para retornar ao pequeno planeta que, até hoje, os astrônomos teimam em procurar entre as diversas constelações. Esquecem da máxima com que Saint-Exupéry encerra sua obra maior que é o Pequeno Príncipe:

    – E gosto, à noite, de escutar estrelas. É como ouvir quinhentos milhões de guizos...

    Aí, exatamente, reside a única orientação astronômica dada pelo Pequeno Príncipe, recebida na conversa que teve com a sua amiga raposa: "Só se vê bem com o coração". E dá um desfecho capaz de sensibilizar até os mais céticos: "O essencial é invisível aos olhos".

    E, então, já não há outro caminho que não seja o de dar valor aos pequenos grandes prazeres da vida. Podemos encontrar a beleza da obra deste aviador, que viveu tão intensamente seus 44 anos, quando nos damos conta que o sentido maior do viver está em encontrar prazer nas coisas simples: como uma rosa que se cultiva, uma amizade que mostra sua cumplicidade até no olhar, a possibilidade de poder olhar para as estrelas ou, quem sabe, um carneiro que se precisa cuidar para que não coma a única rosa existente no planeta.
    Diário Popular, 19-4-2004
    Imagens da web

    POST DATA
    13-3-14
    Veja o post Saint-Exupéry esteve em Pelotas?

    segunda-feira, 10 de março de 2014

    Pelotense reclama demais

    O jornalista Jarbas Tomaschewski não é pelotense, mas assimilou uma característica local: a crítica lamentosa sem busca de soluções, um dos traços da histórica neurose depressiva pelotense. Como bom cronista, ele envolve o leitor ao descrever o problema, mesmo tratando-se de uma questão antiga ou óbvia, ou até mesmo paradoxal e enredada, e termina com uma proposta bem-intencionada (pois a lamúria coletiva é assunto para uma equipe de especialistas, ao longo de décadas, formulando um projeto de transformação social). Leia a crônica "Reclamar: nossa grande virtude", publicada no Diário Popular de 26 de fevereiro passado.

    Todo visitante que chega a Pelotas para aqui fixar residência deveria receber, no primeiro dia nessas terras, um folheto com duas regras básicas de convivência pacífica. Dois artigos simples, suficientes para traduzir o modo pelotense de pensar e facilitar a vida de quem tem pressa em se adaptar, longe das confusões.

    Artigo 1º - Os pelotenses odeiam que pessoas de outras regiões falem mal da cidade.

    Artigo 2º - Os pelotenses adoram falar mal da própria cidade.

    Ao escrever esta crônica, portanto, já estou infringindo o artigo 1º, pois não sou natural daqui e estou fazendo uma crítica. Porém, como sou pelotense por opção há 25 anos, automaticamente estou absolvido e imunizado pelo artigo 2º.

    Meu comentário nada mais é do que a observação de muitos “estrangeiros” radicados na Princesa do Sul. Há algum tempo participei de uma conversa que, sem qualquer estímulo, rumou para críticas ao local onde vivemos. E 99% dos presentes exercitaram, sem dó, a política do “eu só enxergo os defeitos do chão onde piso”. Até que um dos participantes da conversa, não pelotense, falou e deixou todos mudos. Na verdade, constrangidos.

    – Onde eu morava os problemas de vocês são pequenos demais. Como vocês reclamam!

    Muitos tiveram de engolir a resposta que gostariam de ter dado à colocação afrontosa do autor, pois nada nos deixa mais furiosos do que ouvir a verdade que sempre renegamos jogada na cara, sem piedade e sem filtros.

    Frase de Geissy Araujo
    Não defendo fechar os olhos ao que atrapalha a vida de toda a comunidade. Ao contrário, é preciso sim reclamar, se revoltar, lutar por direitos, soluções. Debater o que está errado e, nossa, como tem coisa errada em Pelotas. Mas gostaria de ver, um pouco que fosse, maior distanciamento desse modo de agir. Virou hábito, um péssimo hábito, a ponto de rejeitarmos até o que é bom.

    Nossa fama já ultrapassa as fronteiras. Longe daqui escuta-se que o pelotense é um povo “reclamão” e nada faz para mudar, só chora e não se mexe. E quem gosta de conviver com pessoas assim? Ninguém. A tendência do ser humano é fugir de quem só se queixa e carrega, para onde vai, uma nuvem cinza sobre a cabeça.

    Pelotas, cidade boa demais para viver, tem muitos problemas, uma lista infindável de problemas. E a lista oposta, de nossos orgulhos, está sempre reprimida. Poderia haver mais equilíbrio. Não podemos sorrir para tudo e achar que vivemos no mundo perfeito. Agir assim aproxima qualquer pessoa da idiotice. Mas escolher ficar com a testa encostada no muro de lamentações, sem sair do lugar e nada fazer para mudar algumas situações, já parece caso para tratamento.
    Jarbas Tomaschewski

    imagem do blogue Mariguedes
    Fonte do texto: Diário Popular

    quarta-feira, 5 de março de 2014

    Saudosismo dos anos 50

    Hélio Freitag
    Linha Direta é a coluna diária assinada pelo diretor e fundador do Diário da Manhã, Hélio Freitag, há 34 anos e meio, sempre na página 2. O costume do jornalista é fazer denúncias ou mandar recados a autoridades, mas na segunda-feira 24 de fevereiro de 2014, ele ficou saudosista e poético, lembrando alguns detalhes de infância e da história urbana que não voltarão. 

    É preciso ter mais de 60 anos para entender todas as palavras e todas as reminiscências (v. algumas pistas no final). A alusão ao cronista Rubens Amador rendeu uma crônica que também sairá neste blogue, dentro de uns dias.


    Onde estão as pessoas que frequentavam as praças, bancos faltando, pessoas sobrando? Onde está o carnaval cheirante a lança-perfume, enredada festa de serpentinas, num ar poluído e multicor de confetes? Constelações de pandorgas no ar.

    Rótulo à venda no Mercado Livre
    Moças, moças-mesmo, onde estais... e quando e onde o cachorro-quente pequeno e de mostarda escura foi parar? O guaraná Princesa, a cerveja Porco, refresco de groselha e limão, onde estão?

    O corso da Rua Quinze, desfile na calçada, após o Capitólio soltar? Dormindo, roncando, no colo do pai, os mais antigos viram Iolanda, num tempo que vai.

    A bola de gude, o bilboquê (bibiloquê, mais gostoso), o ioiô, o imba, o pião de fieira rodando na unha, o rouba-monte? E a paciência pacientemente carteada, em que você era o vitorioso e o derrotado de si mesmo.

    Pastéis-de-santa-clara (v. receita)
    Farinha de pilão e o próprio pilão, panela de barro, chaleira de ferro, ventosa de tirar furúnculo e fazer sangria. Pastéis-de-santa-clara (Dona Nilza ainda faz os melhores pastéis-de-santa-clara de Pelotas) e cuecas de saco branco.

    Escarradeiras ao pé de gordas e fofas poltronas, de velhos gorduchos, usando polainas. Bigodões imensos, pontas enceradas, fios de bigode valendo avais e fianças. Gurizão-rapagão... almofadinha ou janota, olhando a moçoila, temendo a velhota.

    Bondes, muitos bondes (meu caro amigo Rubens Amador), bonde aberto, bonde safety; sisudos fiscais batendo as tabuinhas nos dedos moleques de pingentes guris. Viagens de sono menino ao Parque, ao Porto, ao Carrossel. Antigamente nenê chupava trapinho de pano, recheado de goiabada. E o sonho de todos de ser motorneiro.

    Carnaval em 1956, segundo o blogue Pelotas - Crônicas Existenciais
    Missas em latim (ajudei muitas missas celebradas pelo grande e saudoso amigo D. Cláudio Colling, bispo de Passo Fundo e arcebispo metropolitano de Porto Alegre, quando tinha meus 13 anos de idade), ninguém entendendo, mas todos fingindo. E chegava-se a Deus e havia o diálogo.

    Pai garantia e jurava a mocidez da filha; a filha ciente que o pai não tinha amante... que todos sabiam, mas ninguém falava.

    Pelotas era Roma de Nero, queimando inteira, as noites de Pedro, Antônio e João, que mijava nas bergamotas xixi de açúcar. Inegavelmente, Pelotas mudou: física, econômica, social e politicamente.

    Hélio Freitag
    Diário da Manhã, 24-2-14


    • Veja o que significa Cuspir na escarradeira, e uma nota sobre a Guinness Cabeça de Porco.
    • Leia o artigo Carnaval da Rua Quinze, de Luiz Carlos Marques Pinheiro.
    • Assista a missa em latim (57 min) celebrada na igreja de Ibertioga (MG).
    • Dom João Cláudio Colling (1913-1992) foi o primeiro bispo da Diocese de Passo Fundo (1951-1981) e arcebispo de Porto Alegre de 1981 a 1991.
    • As "noites de Pedro, Antônio e João" são as dos santos de junho mais celebrados: Santo Antônio de Pádua (13), São João Batista (24), São Pedro e São Paulo (29).

    domingo, 16 de fevereiro de 2014

    Os gatos cariocas

    Nosso correspondente Nathanael Anasttacio encontra-se no Rio de Janeiro, e sob o "sol febril de fevereiro" observa como a calidez da natureza nos faz mais carinhosos e dispostos à contemplação. 

    de pernas para o ar, em ângulo
    não há nada lá
    vinha a vida/diva/dádiva

    devemos nesse concreto natural
    concretamos tudo
    gentilezas e desconfianças

    fomos sol e sombra
    no muro lia-se:
    FUI CRIME ... SEREI POESIA

    será/seria?

    aliança/casamento/casa vazia

    nessa ordem do tempo

    as férias perenes e o gato carioca... literalmente

    Começo falando nos gatos cariocas. Nunca havia visto animais tão simpáticos e preguiçosos.

    Dormem à sombra, tranquilamente, no Aterro do Flamengo. Lugar este construído/forjado/planejado. Encanta-me a preguiça e o planejamento. A execução, de fato, incomoda-me. Talvez motivado por este sol febril de fevereiro.

    Os preguiçosos cariocas, os gatos, não são ariscos como os outros. São dóceis e carinhosos. Ronronam e são alimentados à sombra por senhoras dadivosas carregadas de ração em carrinhos e compras. Eles têm o pelo bonito e estão espalhados por todo o Aterro.

    O Aterro do Flamengo é construção humana.
    Fica ante a praia da Glória e a praia do Flamengo
    Por que escrevo sobre isso? Pois toda construção ilusória é baseada no sólido/concreto, ressignificando-o. O Aterro do Flamengo foi construído para o desfrute humano e os gatos alimentados e reluzentes coabitam com meninos de rua sujos e famintos.

    Lembremo-nos: toda construção "ilusória" é baseada no concreto. E iludimo-nos com o que nossos olhos veem como real. Nossa cultura de alimentar o próximo, por exemplo. Nossa desconfiança com gentilezas.

    Os gatos cariocas do Aterro bem sabem disto. Eles apenas desconhecem nossa cultura seletiva de escolher a quem tratar bem.

    ANASTTACIO N.
    correspondente

    coco, água, açúcar, sol, areia... seios de uma mãe cálida e generosa
    Fotos: N. Anasttacio

    sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

    Laranjeiras e o Laranjal

    Nathanael, nosso colunista viajante, encontra-se no Rio de Janeiro neste verão, e nos convida a relacionar a riqueza cultural e natural da Cidade Maravilhosa com a da Princesa do Sul. A primeira conexão que ele nos propõe é entre o bairro carioca de Laranjeiras e o bairro pelotense do Laranjal, ambos com praia e muito acolhedores durante o ano todo.

    Leme, Zona Sul do Rio de Janeiro / o leme nos dá a direção

    Faz um ano que deixei Pelotas. Neste período foram três Estados visitados e 10 posts como correspondente cultural.

    Primeiro falo sobre mim, e meu percurso. Há exatamente um ano abandonei a faculdade de cinema no sétimo semestre e fui pôr em prática meu olhar sobre esse mundo que se revela/descortina diariamente. Comecei minha coleção de correspondências em Florianópolis, produzi outros posts/percepções durante meus nove meses em São Paulo e agora chego ao Rio de Janeiro. Viajante, produzindo observações ao longo do andar. Porém, mantendo laços com o ponto de origem. Nossa Pelotas e sua cultura.

    Chafariz da praça São Salvador, no Rio
    (v. mais fotos do bairro Laranjeiras)
    Ao chegar ao Rio passamos alguns dias em Laranjeiras, bairro tradicional da Zona Sul carioca. Notei similaridades latentes entre minhas lembranças de veraneios nas praias do Laranjal e as novas sensações expostas ao sol.

    É, as palavras/adjetivações me excitam e atiçam. E as memórias dão o tom.

    Existe uma diferença entre praia de mar e de lagoa. Mas não existe diferença entre passar um verão na praia/veraneando.

    Pois bem; dito isso, ao trocar e-mails com Francisco Vidal, amigo e mentor/fundador deste blogue, pedi diretrizes, como sempre faço, para lincar os assuntos pertinentes entre Pelotas e Rio. A lista veio longa e notei que, ao entrar no seu sexto ano, o blogue vai exigir mais de mim. Aceito/fomento isso devido à necessidade de expansão e aposto no sucesso do nosso portal cultural pelotense.

    Calçadão do balneário do Laranjal, em Pelotas
    Singularmente, Pelotas é cidade/campo/praia em relações distintas. Aqui do Rio explorarei as ligações culturais de ambas as cidades, especialmente do lado lúdico/verão/praiano.

    Alguém se pronuncia sobre o nome Laranjal? Entendo/conheço a história de/das Laranjeiras.

    Neste post, especificamente, apenas anuncio um 2014 cheio de novos ares/inspirações/ devaneios/erros/acertos. Tal qual nossa cultura cíclica/mutante/fixa/paradoxal, nós nos movemos atrás/através de sonhos/amores/ideais.

    Se analisarmos 2013 com olhos de retrospectiva, então teremos muitos motivos para comemorar: A festa dos cinco anos do blogue ... os patronos escolhidos ... a fomentação da cultura local e o registro dessa teia que nos perpassa e nutre de cultura. Seja esta “produzida em Pelotas”, ou “de Pelotas para o mundo” via internet/blogue.

    Agradeço ao visionário criador deste espaço a oportunidade de unir minhas paixões, design e escrita. E pelo sexto ano consecutivo ter me convidado a assinar a arte do blogue Pelotas Capital Cultural.

    Que venha um ano novo ... novinho ... de novo.
    ANASTTACIO N.
    correspondente

    Orla do Laranjal rende imagens impressionantes, dia e noite, inverno e verão.
    Imagens: N. Anasttacio (1), Wikimedia (2), J. Barreto(3), R. Marin (4)

    terça-feira, 1 de outubro de 2013

    Impulso navegador

    No início da primavera do ano passado, Manoel Soares Magalhães escreveu a seguinte crônica, com inspiração num barco que rondava o trapiche, recém inaugurado no Valverde (v. nota da RBS em 1-9-2012). A relação entre o veículo e a água lhe sugeriu que todos somos navegadores da existência, e estamos expostos ao vento e à solidão. 

    O impulso navegador é a curiosidade de viver. E, na passagem da vida, o barco que nos leva é o tempoCronos, esse carrasco inclemente. Ao lado dele, a estagnada realidade chega a ser um alívio.

    Barco na praia do Laranjal, domingo 23-9-12
    Domingo pela manhã um barco lutava contra as ondas da lagoa. Tal embate revolveu os escaninhos da memória, onde uma gaveta se abriu e eu me enxerguei marujo. Sim, marinheiro. Talvez em razão da ascendência portuguesa, um povo sabidamente navegador. Uma de minhas brincadeiras preferidas era fazer barquinho de papel e jogá-los nas sangas. Fitava-os por longos minutos, até vê-los desaparecer nos recantos sombrios do córrego, levados para longe, lugar desconhecido que, em sonho, eu visitava.

    Pois domingo essa memória retornou. Tomando chimarrão à beira da lagoa, na companhia de minha esposa, a artista plástica e arquiteta Carmen Garrez, permaneci algum tempo fitando a embarcação, que balouçava, a mercê das ondas. Em razão de sua pequenez, as vagas eram imensas e sinistras. Evidentemente que me coloquei no tombadilho do barco, sentindo no rosto os respingos da água fria. O coração rufava; olhar na linha do horizonte, presa de frenesi, na expectativa de uma visão, antevisão, de uma descoberta fascinante.

    As ondas cinzas, cada vez mais altas, davam ideia de que a qualquer instante iria engolir a pequena embarcação, oferenda à Mãe Iemanjá. Girava sobre si mesmo, não sabendo para onde ir. Bem, talvez a ideia fosse essa, deixar-se levar ao sabor da crença, ao sabor da sorte. Bom que seja assim, caso contrário perderia a graça. É como soltar barquinhos de papel na sanga, na crença de que sejam fortes e resistentes às ondas, e que o destino que lhes aguarda é venturoso.

    Fechei a gaveta da recordação, pois a vida tinha de seguir. O domingo, como hipotético barco navegando em outro espaço-tempo, tinha de ir avante. Emaranhar-me em seus invisíveis fios era o destino inarredável. . E foi o que fiz, convicto de que, talvez um dia, sedento por irresistível impulso de navegador, eu reabra a gaveta da lembrança e tire dela o barquinho solitário, balouçando nas ondas da lagoa num frio domingo primaveril.

    Manoel Soares Magalhães

    Veja aqui outra miniatura de Alfredo Lisakovski.
    Fotos: Cultive Ler (1) e F.A. Vidal (2)

    quarta-feira, 26 de junho de 2013

    Em ritmo de decisão (crônica)

    Futebol é o ópio do povo?

    Bonito por natureza. Torcida pelo Brasil. Momento de decisão. De um lado, a Nike e seus milionários-de-chuteiras; de outro, a resistência ao pacote lacrimogêneo de Dilma e seus quarenta ministros. Abençoado por Deus, mas sob encosto de governos endiabrados. Verás que um filho teu não foge à rua.
    A religião é o ópio do povo. Se não a fé, seguramente seus técnicos. No futebol, vitória, derrota ou empate. O jogo não tem culpa, mas a FIFA sim. No mercadão da bola, faturam redes de tevê, grifes internacionais, construtoras e bancos. Governos subservientes, com seus parasitas bem treinados também marcam golaços.
    A torcida desligou a telinha. O futebol ainda não é o ódio do povo. Mas a galera começou a separar a diversão da manipulação. Pra escanteio, aquele rumor imbecilizado das torcidas “organizadas”. As brigas sem sentido, com explorados contra explorados. O adversário está bem à frente. Elite brasileira e seus capachos no poder político.
    Gol contra, marcou o ‘governador’ que não se coça para o piso salarial dos professores. Narrou que os manifestantes seriam pagos, talvez numa operação cinematográfica da extrema-direita. Pisou na bola, imaginando alguma espécie de “bolsa-protesto”. Mas, a mobilização é libertária, gol de placa. No inverno, uma primavera-sem-árabes.
    O Bananão acordou. A FIFA estaria pavimentando o “Carnavalzinho” do título? Bem provável, mas o desemprego na Espanha beira 30%. Em ritmo de decisão, torcida pelotense comemora o raiar da liberdade. Hoje à tarde (26/6), alegria, descontração e criatividade. Quinze centavos não bancam o ópio do povo.
    Carlos Cogoy
    Imagem: MOA

    POST DATA
    27-6-13
    Tom Zé compôs esta semana a música "Povo novo" (ouça aqui).
    Escute aqui o roque de Diogo Darkie "Chegou a hora".
    Veja o programa Entre Nós que analisou os protestos de 20 de junho.

    sábado, 27 de abril de 2013

    A última missa de Dom Joaquim

    Dom Joaquim tem monumento
    na avenida que leva seu nome.
    Era junho de 1940 quando D. Joaquim Ferreira de Melo, segundo bispo da Diocese de Pelotas, presidindo a missa na Igreja do Sagrado Coração de Jesus (Matriz do porto) sofreu um mal súbito e desmaiou, no início da Liturgia Eucarística. Levado ao hospital, faleceria três meses depois, aos 67 anos.

    O Irmão Francisco Maria, lassalista alemão residente em Pelotas, testemunhou o fato e redigiu uma crônica relacionando os momentos da liturgia católica com a vida do bispo. Esse irmão era o padre Carlos Johannes, então com 27 anos. Seu centenário foi lembrado em Pelotas (v. Padre Carlos, cem anos de vida).

    Aquela crônica de 1940 foi publicada em "Polianteia", antologia de elogios fúnebres de D. Joaquim. O professor Jonas Klug Silveira enviou o texto a este blogue, a modo de homenagem ao Padre Carlos. Conforme as pesquisas do professor, a crônica também se encontra na biografia de D. Joaquim escrita por Monsenhor Francisco Silvano de Souza (imprimatur de D. Benedito Zorzi, década de 1950). A grafia foi atualizada.


    Chegamos ao Ofertório. O querido Bispo empalidece, sua respiração torna-se ofegante. Tomando da Hóstia branca e imaculada eleva-a aos céus, suplicando:
    — Recebei, Pai Santo, Deus onipotente e eterno, esta Hóstia imaculada que eu, vosso indigno servo, Vos ofereço, Deus meu, vivo e verdadeiro, por meus inumeráveis pecados, ofensas e negligências; por todos os presentes e por todos os fiéis cristãos vivos e defuntos, a fim de que a mim e a eles aproveite esse sacrifício para a salvação e para a vida eterna. Amém.
    Com face lívida, mãos trêmulas, mas com voz clara e inteligível,  benze o Bispo a água misturada com o vinho  simbolizando assim a união dos fieis com Cristo  e reza:
    — Ó Deus, que maravilhosamente criastes a dignidade da natureza humana, e mais prodigiosamente a remistes, concedei-nos pelo mistério desta água e deste vinho, que participemos da divindade d’Aquele que se dignou revestir-se da nossa humanidade, Jesus Cristo, vosso filho e Nosso Senhor. Amém.
    As forças parece quererem abandonar o venerando Celebrante. Hesita um instante... e depois, violentando-se a si mesmo, continua, erguendo também o Cálice para o céu:
    — Senhor, nós Vos oferecemos esse Cálice da salvação, suplicando a Vossa clemência, para que suba com suave odor à presença da Vossa divina Majestade, para salvação nossa e de todo o mundo. Amém.
    O Altíssimo olha complacente para o sacrifício de D. Joaquim. Mas já não se contenta com a oferta da Hóstia e do Cálice: quer mais. Quer o próprio sacrificador: seu corpo, sua alma, seu sangue, sua vida... Ele há de ser a vítima que será imolada em “propiciação pelos nossos pecados”.

    O sacrifício é duro... mas a vítima está preparada e contente. D. Joaquim diz generosamente a palavra mais sublime que os lábios humanos possam proferir: Sim! Fiat!

    No mesmo instante um suor gélido inunda-lhe a face venerável. Enfraquece de mais a mais. Já não pode continuar a celebração dos santos Mistérios, mas...cambaleia... desfalece.

    A vítima está imolada.

    O próprio Jesus completou a Missa que seu Servo e Ministro iniciara na Matriz do Sagrado Coração. O Ofertório foi comprido: três longos meses passou D. Joaquim entregue às mais cruciantes dores, na Santa Casa.

    Às 11 horas e 2 minutos do dia 22 de setembro anunciava o dobrar lento e lúgubre do grande sino da Catedral, que chegara o momento da Consagração: A alma do santo Bispo voara para os tabernáculos eternos.

    E a Comunhão há de durar eternamente. Na sua ação de graças, D. Joaquim não se esquecerá de nós que tanto lhe queríamos e a quem ele tanto amava, que não hesitou em sacrificar tudo, até a própria vida, constituindo-se deste modo “vítima dos nossos pecados”.

    Irmão Francisco Maria 
    (Pe. Carlos Johannes)
    Lembrança da missa de 30º dia rezada em 22-10-40 pela alma de Dom Joaquim Ferreira de Melo