Decerto,
ó vós que vindes das sombras
e densa neblina,
não compreendereis de pronto
a cidade que aqui vedes:
ela vos parecerá cinzenta e fria.
Decerto,
ó vós que tudo quereis de imediato,
não sabereis encontrar
alma alguma no que enxergais,
pois tudo vos é dado antecipado
nos cadernos de turismo que folheais.
Decerto,
ó vós que tudo sabeis,
é urgente seguir o caminho
pois aqui nada achareis.
Mas, se tiverdes sensibilidade, parai:
porque a noite é imensa
e mais imensa
a mensagem emanada dela:
Uma cidade
não é tão-somente
apenas o que os meros olhos enxergam;
há que haver disposição para descobri-la.
Uma cidade
é infância, adolescência, maturidade,
vozes distantes, primeiros amores,
amarguras diversas, descobertas fugidias.
Uma cidade é ainda
dor na noite.
É incompreensão, é rejeição.
Uma cidade
é mulher em seus caprichos,
é entendimento instintivo
até o ponto nulo da compreensão.
Se tiverdes sensibilidade, parai:
Há um mundo que pulsa
por trás das pedras molhadas,
há histórias infindas
escondidas nas noites frias.
Há crepúsculos
que se renovam cada dia estranhos,
há vida latente
por trás do que é apenas evidente.
Assim, ó vós que pouco sabeis, escutai:
Há saudade que justifica
vosso parar indagado.
Há vivência guardada
por trás da gente encolhida.
Há essência de mundo
em universo tão pequeno.
Se tiverdes mistério, parai:
Não é apenas pequenez o que aqui vedes:
é gente que vem do fundo, das coisas vividas.
É existência que se formou
dia após dia,
noite seguida à noite.
Uma cidade é sempre
acúmulo de vida
que adivinhada existiu.
É sempre gesto
que se esboça mesmo inútil.
Uma cidade
há que ser lentamente descoberta
como mulher
que se despe com graça e mistério.
Uma cidade
não é apenas o que vedes, quando despertais
ao passar insone
dos ônibus nas madrugadas desertas.
Uma cidade exige tempo,
exige paciência,
para se encontrá-la
no percorrer dos ritmos da noite exausta.
Uma cidade é ato de amor que se faz
ou não se faz,
depende apenas das raízes
que formaram o princípio.
Uma cidade é companhia
de almas semelhantes
na descoberta da mútua solidão.
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J. L. Duval em 1980 |
É pessoa sucedendo pessoa
em pensar parecido.
É música, dança, amor,
É terra, unidade, herança.
É lugar definido
pra se aguardar o incerto morrer.
É sítio pra se lançar a semente,
é vida possível e única
na tentativa e esforço
de continuar a ser gente.
Joaquim Luís Duval
A palavra no espelho, 1980
Fotos: Facebook (1), M. Soares (2), G.Mansur (3), Diário Popular (5)