O diálogo relatado ocorre entre Locatelli aos 34 anos de idade e Dom Antônio Zattera aos 50 (pessoas reais, situação imaginada, supostamente em 1949). Outros personagens históricos mencionados: Emilio Sessa, pintor assistente de Locatelli, e o padre Giordani, então pároco da Igreja de São Pelegrino.
Zattera (C) no Vaticano em 1950 |
Com tal pensamento, Dom Antonio olhou pela janela o dia sombrio que se arrastava lá fora. Estatura mediana, rosto redondo, o religioso tinha nos olhos sua principal característica. Eram levemente piscos, denotando grande inteligência e perspicácia. À beira de completar cinquenta e cinco anos, Dom Antonio sentia-se em crise. De fé? Não necessariamente, afirmava de quando em quando. Parado à frente da janela, observava a chuva tamborilando nos telhados da vizinhança do Bispado. Chuva que começara forte às primeiras horas da manhã, mas àquela hora da tarde, pouco depois das quatorze horas, amainara.
O bispo esfregou as mãos frias, batendo levemente os pés no chão. O frio úmido subia-lhe pernas acima, entorpecendo-as. Não tinha na memória lembrança de inverno tão rigoroso em Pelotas. Coçou o queixo bem escanhoado, avaliando a situação na qual fora envolvido à revelia. Era o responsável pela vinda de Aldo Locatelli à cidade. Não podia, entretanto, responsabilizar-se pelos seus atos.
Seus dias na cidade talvez já estejam contados. O Pe. Eugênio Giordani ficou bastante impressionado com o trabalho de Locatelli, e por certo irá contratá-lo para decorar a Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul. Isso seria formidável! Mão às costas, dirigiu-se à mesa de trabalho, sentando-se. Ouviu passos no corredor. Seria ele? Que bom que fosse, pois desejava resolver aquela situação com a máxima urgência. Os mexericos que corriam pela cidade o estavam incomodando.
A porta se abriu, dando passagem a um jovem padre de olhar malicioso.
— Senhor, ele está aqui.
— Que bom! Faça-o entrar.
Aldo Locatelli (1915-1962) |
— Sente-se — disse o bispo, apontando uma das duas cadeiras postas frente à escrivaninha. Locatelli acomodou-se, cruzando pernas.
— Que bom que o senhor veio — comentou o bispo, olhando o artista fixamente.
Não gostava muito de fixá-lo de frente. Não que tivesse medo. Não fora educado para temer os homens. Fora, antes, disciplinado para conduzi-los, orientá-los na vida, indicando-lhes caminho do Senhor. Porém, temia que o artista enxergasse em seus olhos o que tentava, ao longo dos dias, esconder de si mesmo. Havia, entretanto, outros motivos para recear aquele olhar. O mundo da arte, quem sabe, com seu viés, seus labirintos, seus caminhos perigosos... Não; não temia olhá-lo assim de frente; todavia, melhor não fazê-lo repetidas vezes, pois o não-dito, o não-sabido eram coisas que ele não estava disposto a considerar. Até porque seu mundo era muito claro, muito explícito. Os mistérios a considerar eram os mistérios de Deus. Sim; estava apto a discorrer acerca dos desígnios superiores. Acerca de coisas escorregadias... nem pensar.
— Estranhei seu convite, Dom Antonio — disse Locatelli.
O bispo acomodou-se melhor, pois sabia que sua tarefa seria espinhosa.
— Ora, um estranhamento sem motivo — volveu o religioso, usando de subterfúgio para aliviar a tensão.
Ponto para o pintor, obrigando-o a agir de forma não usual. Locatelli sorriu, descruzando as pernas, tornando a cruzá-las outra vez. Desde que recebera o convite de Dom Antonio para um encontro, encontro não programado, desconfiava de suas intenções. Gostava do religioso. Desde que o conhecera na Itália, aprendera a respeitá-lo como um digno representante de Deus. Por essa razão entendia seus motivos, ainda que fossem absolutamente discutíveis. Acaso fosse outro bispo a convidá-lo para entrevista tão inusitada, não o atenderia.
— Fui comunicado de que há um probleminha na Escola de Belas Artes.
O pintor sorriu, mostrando os dentes serrilhados. O brilho do seu olhar tornou-se ainda mais intenso.
Batismo de Jesus (Catedral de Pelotas) |
— Normal? — perguntou o bispo, apertando as mãos uma contra a outra.
— Sim, normal.
O bispo engoliu em seco. Diacho de homem mais teimoso!
— Caro maestro — disse mansamente o bispo, medindo bem as palavras. — Respeito sua arte como ninguém. Até porque sou responsável pela sua vinda a Pelotas. O trabalho que o senhor realiza na Igreja é irretocável, o que demonstra, inegavelmente, a grandeza do seu talento. Entretanto, já não se pode dizer o mesmo do método de ensino empreendido na Escola de Belas Artes. Não é, digamos, nada ortodoxo.
— O senhor está se referindo aos nus artísticos?
Dom Antonio não esperava que o italiano fosse tão incisivo.
— Exatamente.
O pintor pôs-se de pé, dirigindo-se à janela, onde olhou as nuvens carregadas que o vento levava em direção ao sul. Bem que Emilio o havia prevenido quanto ao puritanismo daquela cidade. Trabalhar com nu artístico era por demais ousado, dissera-lhe o amigo. Não lhe dera ouvidos. Aliás, quase nunca dava ouvido a quem quer que fosse. Mercedes, sua esposa, tinha-o como um dos homens mais teimosos que conhecera. Mais ainda que seu velho pai.
Voltou-se para Dom Antonio, olhando-o firmemente.
— Trata-se de arte, dom Antonio. Arte!
— Uma arte ousada demais, o senhor não acha?
Locatelli aproximou-se da mesa, permanecendo de pé, olhando o religioso de cima a baixo. Tinha impressão de que o bispo, aos poucos, ia sumindo na cadeira. Poderia dizer a ele que seus dias em Pelotas estavam contados, que logo estaria em Caxias do Sul, abandonando a Escola de Belas Artes. Resolveu, porém, brincar com o religioso.
— Como o senhor imagina que eu trabalho, Dom Antonio?
"Expulsão do Paraíso" (Igreja de São Pelegrino) |
— Não entendi a pergunta.
— Refiro-me, Dom Antonio, aos meus personagens, o Evangelista São Mateus, os anjos que cantam à entrada de Jesus em Jerusalém, São Pedro e São Paulo, e tantos outros, os quais, antes de se constituírem em pinturas sacras, foram inspirados em gente. Gente nua, Dom Antonio, de carne e osso... Com sangue nas veias!
O religioso indignou-se.
— O senhor inspira-se em modelos vivos. Até aí tudo bem. Mas levar à Escola de Artes esse método de estudo não lhe parece avançado demais para nossos costumes?
Locatelli deixou escapar nervosa gargalhada.
— Ora! Não estamos mais na Idade Média. Admito que existem algumas senhoras incomodadas... Um coro de poucas vozes, Dom Antonio! Não podemos sacrificar o estudo dos alunos por causa dessas poucas e preconceituosas pessoas.
Dom Antonio ficou de pé, levemente ruborizado. Tremiam-lhe as mãos, e um suor indesejado escorreu pelas têmporas. Que italiano desaforado! Mas, no fundo, tinha razão. Os modelos vivos são largamente utilizados nas escolas de arte. Indispor-se com Locatelli por causa de algumas senhoras escandalizadas não estava em seus planos. Todavia, a situação fora criada. Precisava, urgentemente, resolvê-la, até porque não desejava polemizar com aquele artista temperamental. Por essa razão, seria bom dar fim àquela desagradável entrevista.
Aproximou-se do pintor, pegando-o do braço, levando-o em direção à porta.
— Meu caro maestro — disse Dom Antonio, voz conciliadora. — Pense um pouco sobre o assunto.
— Pensarei, Dom Antonio — volveu Locatelli, sabendo de antemão que não faria nada para alterar a ciência de seu trabalho.
— Fico feliz — respondeu Dom Antonio, abrindo a porta, estendendo a mão ao muralista. — Até mais ver. Recomendações à senhora Locatelli.
O italiano apertou a mão de Dom Antonio; uma mão fria, úmida.
— Até outro dia, Dom Antonio.
Tão logo o artista deixou seu gabinete, o bispo afundou na cadeira. Padre Afonso entreabriu a porta.
— Deseja algo, Dom Antonio?
— Sim, padre Afonso... A paz que não existe na terra.
Detalhe de "Juízo Final e cenas do Dies Irae" (Igreja de São Pelegrino) |
2 comentários:
Promessa de um grande livro.
Maria Helena
Já próximo o lançamento do livro, pronto para a Feira do Livro de 2013, o autor informa que o relato teve muitas reviravoltas e os personagens mudaram, inclusive Locatelli e Sessa não aparecem mais. Mantém-se a situação da Pelotas dos anos 50 e várias novidades para os leitores de Manoel Magalhães.
Apesar de este capítulo 1, aqui publicado, não mais ir no livro, deixo-o no blogue como testemunho do início da criação deste novo livro que surpreenderá Pelotas.
Postar um comentário