Somos o que lemos, já disse um autor. Se algum dia abrimos os olhos para as coisas mais importantes da vida, é porque alguma ideia de um grande mestre chegou a nosso conhecimento, e nos fez depurar o que fazemos na vida. Se queremos um mundo melhor, comecemos por nós mesmos, por nossa inteligência e criatividade. Que este pensamento nos faça extrair do ano 2015 as máximas gratificações, para nós e nossos iguais.
A Ponte JK, sobre o Lago Paranoá em Brasília, é um arrojado projeto do arquiteto Alexandre Chan. Seus arcos diagonais foram pensados para sugerir o movimento de uma pedra quicando n'água. |
Pensar a arte é pensar a existência e a estrutura que a possibilita
A crise da modernidade é a consciência de que um único modelo filosófico não contempla todos os domínios do saber humano. Dá-se então a irredutível ruptura entre o conhecimento filosófico e o científico. Como diz o sociólogo alemão Jürgen Habermas (nascido em 1929),
Pensar a arte é pensar o que somos
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) vê a arte como uma forma de atingir a totalidade do real, de compreender a existência.
Recriar o real é ver o que está subjacente ou latente, é sentir ou pressentir a articulação primeira da obra. Na criação artística, para Aristóteles, a mimesis (imitação mimética do mundo real) instaura um valor que constitui um apelo a todos os homens, e a catarse (purificação emocional) é o grau mais acabado da libertação promovida pela arte, sendo que ambas se unem na tensão estrutural [conforme o acadêmico Eduardo Portella em "Teoria da Comunicação Literária", 1976, p. 46].
Pensar nosso texto criativo
Na literatura, a criação apresenta várias faces: 1) o Tema, que é o impulso que leva o artista a criar certo conteúdo; 2) a Estrutura, que é a organização da obra em si; 3) o Modelo: este decifra a estrutura na medida que mostra sua dinâmica, indica uma direção de sentido e desencadeia a sensibilidade do leitor – ele se constrói com dados da época e da situação da obra lida ou investigada.
Há dois tipos de narrativas literárias: as de estrutura simples, de fácil compreensão, e as complexas, onde são introduzidos estranhamentos, alterações nos elementos convencionais até que eles se tornem polissêmicos, ampliando sua carga de informações. Estranhamento é desvio da norma, é uma expansão do significante na construção das frases, na articulação das personagens, é ruptura com o significado.
A complexidade do texto literário aparece em três níveis: da narrativa, das personagens e da língua. A obra de narrativa complexa não tem fim nem começo, e o início é uma continuação do final. Alguns exemplos são "Grande Sertão: Veredas" (Guimarães Rosa, 1956), "Rayuela" (J. Cortázar, 1963) e "Cien Años de Soledad" (G. García Márquez, 1967).
As personagens complexas rompem com a lógica do espaço e do tempo, são universais e atemporais. Poderiam ser outras: Cristo, Virgem Maria, El Cid [ver "Em memória de João Guimarães Rosa", de Carlos Drummond de Andrade, 1968, p. 15].
Sendo a linguagem literária imagem, está explicado por que as manifestações literárias complexas não se utilizam da linguagem – mas criam uma nova linguagem, um novo estilo, produzem palavras, significados e ordens gramaticais.
Recriar a linguagem, em Rosa
A literatura de João Guimarães Rosa (1908-1967) é, no grau mais absoluto, instauradora, fundadora. Sua obra pode ser analisada por diversos prismas, tantas seriam os estranhamentos e as contradições. Mas é a partir delas que se vai esclarecer e divisar realmente seu alcance.
Rosa despertou as inusitadas palavras e fez com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com espaços e linhas, em Brasília e no mundo inteiro. Serviu-se de recursos que vão desde a criação linguística pessoal até a mistura, artisticamente dosada, de vocábulos arcaicos e modernos, nacionais e estrangeiros, eruditos e populares, ao jogo exótico das palavras na frase, obtendo efeitos surpreendentes, no ritmo e na sonoridade.
O vocábulo inédito leva ao âmago das coisas. É, em Rosa, uma necessidade temática profunda. Na gramática, seus gerúndios ou particípios equivalentes a orações, alguns até precedidos de conjunção, constituem tradição milenar da linguagem oral. Rosa sabe, como pesquisador devotado e profundo conhecedor de várias línguas, que linguagem é criação contínua, e, com seu temperamento de relojoeiro, deforma e remonta uma gramática e uma retórica que têm ignorado importantes possibilidades da língua portuguesa.
Em carta a seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason (1910-2012), referindo-se ao Quem de sua língua, Rosa afirmou:
Pensar-se a si mesmo é pensar o Ser
Pensar a arte é pensar a existência e a estrutura que a possibilita. Assim como o filósofo e o cientista buscam novos modelos e novos paradigmas, o artista busca novos temas, novos esquemas e novas linguagens para suas obras e projetos.
Os mais rupturistas e inovadores foram os que permaneceram na memória dos séculos e no registro das enciclopédias. Ao buscar novos caminhos, os revolucionários questionam a própria organização do que já existe, e assim fazem uma pequena e focada filosofia da existência.
Cada início de ano nos sugere: podemos reiniciar a vida, rompendo esquemas limitados de nossa estrutura, de nosso comportamento e de nosso Ser. Que este 1º de janeiro seja uma oportunidade para que, como os grandes escritores e os grandes sinfonistas, repensemos nosso roteiro de vida, para reinventar nossas personagens e readaptar nossas mimetizações no mundo real.
"temos que perceber os sinais de um novo tempo, uma nova época, um novo princípio não organizador da história em períodos, de um novo princípio que nos faça perceber as coisas de outra maneira, em nível de razão, em nível de compreensão do ser humano na história" [citado do livro "Epistemologia e Crítica da Modernidade", do professor gaúcho Ernildo Stein, 1991, p. 23].
Pensar a arte é pensar o que somos
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) vê a arte como uma forma de atingir a totalidade do real, de compreender a existência.
Recriar o real é ver o que está subjacente ou latente, é sentir ou pressentir a articulação primeira da obra. Na criação artística, para Aristóteles, a mimesis (imitação mimética do mundo real) instaura um valor que constitui um apelo a todos os homens, e a catarse (purificação emocional) é o grau mais acabado da libertação promovida pela arte, sendo que ambas se unem na tensão estrutural [conforme o acadêmico Eduardo Portella em "Teoria da Comunicação Literária", 1976, p. 46].
A vida humana é como uma amarelinha, um perneta querendo chegar ao céu. Para senti-lo, é preciso ler o livro de Cortázar. |
Na literatura, a criação apresenta várias faces: 1) o Tema, que é o impulso que leva o artista a criar certo conteúdo; 2) a Estrutura, que é a organização da obra em si; 3) o Modelo: este decifra a estrutura na medida que mostra sua dinâmica, indica uma direção de sentido e desencadeia a sensibilidade do leitor – ele se constrói com dados da época e da situação da obra lida ou investigada.
Há dois tipos de narrativas literárias: as de estrutura simples, de fácil compreensão, e as complexas, onde são introduzidos estranhamentos, alterações nos elementos convencionais até que eles se tornem polissêmicos, ampliando sua carga de informações. Estranhamento é desvio da norma, é uma expansão do significante na construção das frases, na articulação das personagens, é ruptura com o significado.
A complexidade do texto literário aparece em três níveis: da narrativa, das personagens e da língua. A obra de narrativa complexa não tem fim nem começo, e o início é uma continuação do final. Alguns exemplos são "Grande Sertão: Veredas" (Guimarães Rosa, 1956), "Rayuela" (J. Cortázar, 1963) e "Cien Años de Soledad" (G. García Márquez, 1967).
As personagens complexas rompem com a lógica do espaço e do tempo, são universais e atemporais. Poderiam ser outras: Cristo, Virgem Maria, El Cid [ver "Em memória de João Guimarães Rosa", de Carlos Drummond de Andrade, 1968, p. 15].
Sendo a linguagem literária imagem, está explicado por que as manifestações literárias complexas não se utilizam da linguagem – mas criam uma nova linguagem, um novo estilo, produzem palavras, significados e ordens gramaticais.
Recriar a linguagem, em Rosa
A literatura de João Guimarães Rosa (1908-1967) é, no grau mais absoluto, instauradora, fundadora. Sua obra pode ser analisada por diversos prismas, tantas seriam os estranhamentos e as contradições. Mas é a partir delas que se vai esclarecer e divisar realmente seu alcance.
Rosa despertou as inusitadas palavras e fez com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com espaços e linhas, em Brasília e no mundo inteiro. Serviu-se de recursos que vão desde a criação linguística pessoal até a mistura, artisticamente dosada, de vocábulos arcaicos e modernos, nacionais e estrangeiros, eruditos e populares, ao jogo exótico das palavras na frase, obtendo efeitos surpreendentes, no ritmo e na sonoridade.
O vocábulo inédito leva ao âmago das coisas. É, em Rosa, uma necessidade temática profunda. Na gramática, seus gerúndios ou particípios equivalentes a orações, alguns até precedidos de conjunção, constituem tradição milenar da linguagem oral. Rosa sabe, como pesquisador devotado e profundo conhecedor de várias línguas, que linguagem é criação contínua, e, com seu temperamento de relojoeiro, deforma e remonta uma gramática e uma retórica que têm ignorado importantes possibilidades da língua portuguesa.
Em carta a seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason (1910-2012), referindo-se ao Quem de sua língua, Rosa afirmou:
“A língua para mim é instrumento: fino, hábil, abarcável, penetrável, sempre perfectível. Mas sempre a serviço do Homem e de Deus, da Transcendência” [tomado do livro "João Guimarães Rosa", vários autores, UFRGS, 1969, p. 132].A obra de Rosa é eminentemente humanista, a exemplo dos alemães Thomas Mann (1875-1955) e Hermann Hesse (1877-1962). Contrapõe-se ao niilismo do irlandês James Joyce (1882-1941). A religiosidade de Rosa é vivencial, é intuição do universo, é o sentimento da radiosa aventura humana no mundo. Pelas falas de seus personagens, depreende-se que Deus é o sim, é a justiça, enquanto o Diabo é o não, é o mal, a guerra: é a desordem que se opõe à ordem. E nessa polaridade vive o homem.
A Santa Casa de Pelotas foi construída em partes, desde 1867 até 1934. Por isso mostra notórias assimetrias e mesclas de estilos formais {foto H. de Borba]. |
Pensar-se a si mesmo é pensar o Ser
Pensar a arte é pensar a existência e a estrutura que a possibilita. Assim como o filósofo e o cientista buscam novos modelos e novos paradigmas, o artista busca novos temas, novos esquemas e novas linguagens para suas obras e projetos.
Os mais rupturistas e inovadores foram os que permaneceram na memória dos séculos e no registro das enciclopédias. Ao buscar novos caminhos, os revolucionários questionam a própria organização do que já existe, e assim fazem uma pequena e focada filosofia da existência.
Cada início de ano nos sugere: podemos reiniciar a vida, rompendo esquemas limitados de nossa estrutura, de nosso comportamento e de nosso Ser. Que este 1º de janeiro seja uma oportunidade para que, como os grandes escritores e os grandes sinfonistas, repensemos nosso roteiro de vida, para reinventar nossas personagens e readaptar nossas mimetizações no mundo real.
Loiva Hartmann
Academia Pelotense de Letras
Academia Pelotense de Letras
A orquestra francesa Concert Spirituel recriou efeitos do séc. XVIII pedidos pelo rei George II
na "Música para os Fogos de Artifício", apropriada para celebrações como o Ano Novo.
na "Música para os Fogos de Artifício", apropriada para celebrações como o Ano Novo.
2 comentários:
Bom e oportuno texto. Parabéns!
Muito grata, prezado Manoel
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