O relato tem um ponto de partida clássico, o retorno às origens após uma longa ausência. Além desse detalhe biográfico, Ramil coloca outros, como a figura admirável do irmão mais velho e o fato de viver rodeado de artistas. Mas o principal é que ele fala de sua cidade natal - o lugar físico e histórico - e de Satolep, a sua Pelotas inventada, lembrando trocadilhos da infância, quando ele e os amigos brincavam de inverter a ordem das palavras. Vítor, por exemplo, se chamava Rotiv Oguh Sevla Limar. Anos depois, criaria o Barão de Satolep, personagem tão intenso que teve que ser deixado de lado para que Vítor pudesse aparecer e falar.
Costumava ver minha alma quando criança, ao bafejar nas vidraças de junho para nelas escrever meu nome. Minha alma carregava meu nome. [...] Viajando pelo mundo, eu não a vira.
Ao redor do pretexto inicial – o retorno ao lugar frio e úmido – cruzam-se tantas linhas (mentais, históricas, espaciais) que a leitura se faz emocionante e necessária. De saída se forma o enredo, que se enredará mais e mais, circularmente, deixando o leitor tonto nas vertigens do protagonista.Eu tinha a sensação de já estar há muito tempo em Satolep, mas acabara de chegar. Era a minha segunda noite na cidade, a primeira em minha casa. O céu estava límpido, estrelado. A cerração de ontem parecia recordação de outro inverno.
Como não identificar-se com o relato, se os lugares são os mesmos que conhecemos: Café Aquários, Praça Coronel Pedro Osório, Sete de Abril, o Gasômetro, Santa Casa, Estação Ferroviária... Como não interessar-nos, se os personagens que se cruzam conosco são nada menos que João Simões, Lobo da Costa, Francisco Santos (o cineasta pioneiro que fundou o Teatro Guarany)... Nem nos damos conta dos anacronismos, esses fatos que não deveriam ser simultâneos. Mas como os desejos querem realizar-se, e o inconsciente é atemporal, tudo pode acontecer.À direita, uma das 27 imagens do livro, perante o lugar fotografado. Pelotas e Satolep coincidem bastante.
Refletir sobre a natureza de Pelotas... É o lugar mais úmido do mundo? A tradição leva a algum futuro? O que fazer com nossas ruínas? Na decadência há algo que sobreviva? Ramil não só tem boas respostas: ainda as reúne sob um novo paradigma, a Estética do Frio (Sul-melancolia-umidade-penumbra), e nos oferece a esperança da auto-estima, a do Patinho Feio que se descobre belo em sua re-visão.
O relato dá uma elegante explicação do anagrama de “Pelotas”. Eu pensava: será uma contraposição à estética tropical (frio versus calor)? Oposição ao estabelecido, como as páginas negras do livro e a ficha catalográfica posta na última página? Ácida crítica à mentalidade regressiva, inversa ao progresso? Alusão ao movimento de ir e voltar, de sair e retornar? A resposta está nas páginas 36 e 63, que se aludem mutuamente. Até nesse detalhe, a inversão se faz lógica e mágica.
Há outra alusão interessante na foto de capa (esq.): é a mesma na contracapa, mas invertida. Observe-as bem e parecerão locais diferentes. Pelotas-Satolep?
O livro é da editora paulista Cosac Naify, com preço fixo de 39 reais. Vale como ficção, como documento histórico e como forma de autoconhecimento. Para conhecer e para amar Pelotas. Dá vontade de saboreá-lo na intimidade. Como um descobrimento psicanalítico.
Foto 1: Blog Roccana2. Foto 2 e 4: Cosac Naify. Foto 3: F.A.Vidal.
POST DATA (01-02-10): O vídeo abaixo, que promove o livro, foi feito por Eduardo Amaro da Silveira, pelotense residente em Lisboa. Sugerido por Teresinha Brandão em comentário do post "Cidade de Sombras".
Um comentário:
Francisco, sensacional a resenha da obra do Ramil, dá vontade de ler e reler - devorar - o livro! Ele está na minha cabeceira, li as primeiras páginas... mas depois de ler tua percepção psicanalítica da obra, tenho vontade de abandonar todos os meus afazeres e me deitar, de preferência em um quarto úmido e frio, a ler SATOLEP...
Abraços, Jana
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