Cheguei à rua, a luminosidade do sol cegando-me. Nossa! Quanto tempo eu não punha os pés para fora de minha prisão durante o dia? Afinal, habituara-me a abandoná-la somente à tardinha, quando o sol é uma coisa mole e amarela caindo por detrás dos edifícios, deixando a cidade entregue à escuridão reconfortante.
Caminhei ao acaso, sem saber exatamente por que quebrara a rotina. Talvez fosse a insuportável solidão e/ou a patética insatisfação, e bem possível que fosse a asfixia narcotizante do cubículo me reduzindo a fugaz sombra de homem? Ou, quem sabe, a lembrança da vizinha de olhar claudicante tenha me empurrado porta afora. Ah! A resposta que se danasse.
Deixei-me levar, passo vagaroso, pelo aluvião de pessoas rolando pelas calçadas, ruas, gente estranha, apressada, cara amarrada e transbordando tensão, obedientes às infames regras do iridescente-nervoso-idiotizado formigueiro, cuja coreografia me deixava absolutamente tonto. Uma panela de pressão cozinhando sopa de curiosos e torpes ingredientes - pessoas, ideias, filosofias, projetos, sonhos, amores, rancores, frustrações e desejos.
Cenho franzido, peregrinei pela cidade o dia inteiro, chegando à conclusão de que em nosso infeliz mundo é impossível à sociedade não se dividir em duas classes: a dos opressores e a dos oprimidos. A primeira entregue à fartura e a segunda, aos braços pouco confortáveis do deus-dará.
Fragmento do conto "Cheiro de bergamota... de pele juvenil" (1ª edição: Cultive Ler, 1995).
Dois Textos Marginais, de Manoel Soares Magalhães. Pelotas: Livraria Mundial, 2009.
Dois Textos Marginais, de Manoel Soares Magalhães. Pelotas: Livraria Mundial, 2009.
Fotos de F. A. Vidal
3 comentários:
Excelente texto. Um Balzac contemporâneo certamente.
Magalhães é um dos melhores escritores da cidade. Tem demonstrado isso com seus últimos livros. Vampiros é um romance que reflete a contemporaneidade e uma boa narrativa policial. Excelente post aproveitando um talento de nossas letras. Paiva.
Texto e fotos em perfeito equilíbrio. Parabéns!
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