domingo, 15 de agosto de 2010

O leitor passeante dos livros de pedra

Há um ano, o escritor Manoel Magalhães iniciou, no Amigos de Pelotas, uma participação que se estende até hoje. Romancista, repórter, poeta e dramaturgo, ele começava então um ciclo como cronista literário, formatando um gênero que se ajusta muito bem à agilidade da internet, e lavrando conteúdos profundos, que exigem uma atenção e concentração mais próprias de um leitor anterior a Gutenberg.

Naquele domingo 16 de agosto, Manoel expressou um sadio protesto ante a crônica do sábado 15
Fim de semana em Pelotas, de Roberto Soares. O editor publicou a reação com o título: Voz do leitor: Amor e ódio pelo "torrão" natal. Os leitores polemizaram, mas aprovaram os dois artigos, preferindo ou o tom mais realista de Roberto ou o mais poético e encantado com a cidade, de Manoel. Leia abaixo seus comentários e uma conclusão minha.

"Pelotas não é nem melhor nem pior que outras cidades. Nosso amor por ela é que a distingue de outras, de maior ou menor porte.

Entendo que tenhamos uma relação de amor e ódio com o "torrão" natal. É da vida. É do ser humano. Idiossincrasia à parte, penso que depende de nós encontrarmos referência que nos agrade, plasmada no imaginário da cidade. Depende muito do flaneur, cujo olhar não esteja esgotado, desiludido.

É uma característica dos nativos exaurir seu olhar e, em razão disso, perder a capacidade de enxergar poemas onde os poemas estão.

As cidades são livros de pedras cotidianamente lidos. Mas são possíveis releituras, arrancando-lhes outras perspectivas visuais. Depende muito, evidentemente, de nossa capacidade de encantamento, magia que se processa nas almas libertas - e não quero dizer com isso que a alma de Roberto (autor do artigo) é cativa pelo fato de ele demonstrar certo cansaço em relação à cidade.

Pela forma como escreve, percebe-se sua imaginação e poder de encantamento. Entretanto, o que lhe falta para ver a cidade com um olhar, digamos, mais amoroso?

Não saberia dizê-lo. Sei o que posso fazer - e constantemente faço, isto é, deixar-me ir meio sem destino, buscando encontrar surpresas no caminho, e de fato encontrando-as. E afirmo, não são surpresas negativas, não, malgrado a cidade esteja necessitando constantemente de ajuda, de nossa ajuda. Um bom domingo a todos!"
Manoel Soares Magalhães

Concordando com Roberto
  • O apontamento do Roberto é prático no aspecto comum do que é cultura, cidade, logística e turismo.
    A cidade tá deficitária sim e precisa de uma chacoalhada, seja dos visionários ou dos carentes de melhor visão que podem reclamar disso!
  • Considero o imaginário maravilhoso mas não dá pra viver só disso, pois existe um mundo lá fora pelo qual se pode melhorar. Creio que a questão do centro em si não seja o ponto alto da questão, visto que aos finais de semana há deslocamento de atividades como na Avenida Bento, Laranjal, Dom Joaquim e etc. O que entendo é que vemos no centro apenas uma cidade cenário em promessa de revitalização e conservação histórica. O afeto à cidade natal não é exclusividade de Pelotas. Basta perguntar o que um "imigrante" de Sta Vitória ou Jaguarão pensa de sua cidade de origem.
  • Na minha opinião Roberto foi mais objetivo e a poética ainda que interessante de Manoel me pareceu deslocada, pois que tira o foco da falta de atenção em melhorias da cidade, de toda forma acrescentam observações interessantes em contextos diferentes.
  • Não esqueçamos que Satolep sugere certa antítese da Pelotas real numa contestação do que insatisfaz, como disse o próprio [Ramil] a respeito no livro Satolep.
    "...Não fixar Satolep como a Pelotas de 1922, por exemplo, mas também não deixar de mostrar essa Pelotas do passado que é a base. Não deixar de protestar, de fazer uma crítica à Pelotas real, a essa Pelotas que já não existe por nossa própria culpa, pelo nosso descaso, não só de Pelotas, mas pelo descaso geral do Brasil à preservação da história. Muita gente lá em São Paulo que trabalhou no livro via as fotos e ficava chocado: "Então Pelotas já foi assim?". Para mim que sou um apaixonado pelas coisas antigas, essa questão tinha muita relevância."
  • O imaginário não pode ser limitador, mas deve justamente impulsionar a melhorar o real!

Concordando com Manoel

  • Realmente a cidade é de uma complexidade muito maior do que seus problemas ou qualidades, ela é um construto orgânico e como tal necessita também um olhar amoroso e, há 10 anos fora, cada vez que retorno a cidade consegue me encantar, pois cada novo olhar me revela, sem necessariamente ocultar suas mazelas graves, uma outra cidade que me encanta, quer na gentileza de nosso povo, quer na beleza de sua histórica geometria urbana e arquitetura que foram, por sinal, a base para Satolep de Vitor Ramil, o qual lançou sob a camada da crise que patinou nossa autoestima um olhar possível e amoroso sobre Pelotas.
  • Excelente texto. As cidades sao dotadas de grande complexidade, e não podem ser vistas de forma "pequena". Magalhães tá de parabéns pelo texto.
    Dalva
  • Roberto, que escreve muito bem, errou a mão em seu artigo. Faltou ao seu texto o tempero poético que sobrou no texto de Magalhães, assim como sobra em Satolep, de Ramil, onde também a poesia é amplamente anunciada.
    Carolina
  • Lindo texto. Profundo e reflexivo, demonstrando a complexidade das cidades.
  • Visões deterministas são míopes. Magalhães, em seu texto, dá a verdadeira dimensão das coisas. Muito legal!
  • Ando cansada de ver Pelotas são maltratada - na maioria das vezes por visoes equivocadas. Acho que a maioria das pessoas que a criticam negativamente não tem o hábito de viajar. Se viajassem veriam que as todas as cidades, a exemplo de Pelotas, são organismos vivos, pulsantes, recheados de coisas boas e ruins. O senhor Magalhães viu isso - e viu muito bem! Seu texto tem dimensões poéticas e humana, sem deixar de perceber as coisas negativas. É assim, na minha opinião, que se deve observar as cidades.
    Antonia - arquiteta.
  • Comparar a cidade a livros de pedra é um achado! Tenha certeza o autor da definição que daqui para frente olharei Pelotas de forma diferente.
  • Um rico texto. De quem tem vocação para poeta.
    Patricia
Imparciais
  • Roberto e Magalhães, cada um ao seu jeito, deram mostras de que em Pelotas tem gente que pensa a cidade como um organismo vital. Em posições antagônicas acerca de perspectivas visuais, isto é, na forma como enxergam a mesma cidade, estão juntos no conjunto, ambos valorizando uma discussão que tem de ter nível - e seus textos atestam isso. Parabéns ao editor por contar com nomes de peso em seu elenco de articulistas. Pelotas jamais será a mesma para quem leu os respectivos trabalhos, avaliando-os de acordo com suas respectivas sensibilidades. Nós, pelotenses, ganhamos.
  • Não gosto de estereótipos. Concordo que a cidade não é nem melhor e nem pior.

Apesar da diferença de visão, os dois articulistas parecem ser o tipo de andarilho (flâneur) que observa a cidade, buscando: seja decifrá-la, como leitor ouvinte, ou corrigi-la, como interventor.

Escreve Danielle Melchiades no artigo
Trilhando diálogos com Baudelaire: "O flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descreve as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo".

Portanto, Roberto e Manoel são cronistas a ser lidos de modo complementar, pois falam da mesma cidade na mesma época, diferenciando-se não na inteligência mas no sentimento de estresse ou de serenidade.
Imagens da web e Cosac Naify (3)

7 comentários:

Anônimo disse...

Post excelente, sobretudo por dar ênfase a uma discussão que não se exgota nunca. Sou fã de Magalhães no Amigos, um escritor atento as "coisas" de Pelotas. Um poeta que ainda não tem o destaque merecido. Antonia

Anônimo disse...

Nã entendi o que o autor do post quis dizer com "ocomeçava então um ciclo como cronista literário, formatando um gênero que se ajusta muito bem à agilidade da internet, e lavrando conteúdos profundos, que exigem uma atenção e concentração mais próprias de um leitor anterior a Gutenberg". De qualquer jeito, gostei do texto.

Francisco Antônio Vidal disse...

Porei em sinônimos, se for de ajuda:
Há um ano, Manoel começava uma fase como cronista com coluna própria no Amigos, adotando com a forma do gênero "crônica" a agilidade que se requer na internet e, no conteúdo, uma profundidade e riqueza tal que somente um leitor de jornais impressos e livros (ou mesmo pergaminhos) consegue captar, dado o nível de atenção e de concentração necessários para tal.

O alemão Johannes Gutenberg inventou a impressão moderna de livros e jornais, no século XV. Depois dele, a rapidez de leitura e a brevidade dos textos puderam aumentar pouco a pouco, até o nível vertiginoso de hoje, em que já se prescinde da impressão no papel.

Anônimo disse...

Excelente post. Tão bom que já suscita perguntas e inquietações. Aqui cheguei através de um amigo do Amigos, que me recomendou a leitura. Já conhecia este site, mas, devido a correria do dia a dia, deixei de freqüentá-lo. Após este oportuno texto, dando ênfase a um assunto que me interessa muito - a cidade como palco de vivências - prometo voltar sempre. Sou fã do escritor Manoel Magalhães. Admiro sua capacidade de "ler" a cidade de uma forma poética. Em seus livros isso é corrente, e em suas crônicas mais recentes, publicadas no Amigos, esse modo de enxergar a urbe evidencia-se. Portanto, caro amigo editor do Pelotas Cultural, seu post tem a qualidade dos textos, tanto de Magalhães quanto de Roberto Soares, igualmente um "andarilho". Aqui voltarei. Um abraço.

Euzébio

Francisco Antônio Vidal disse...

Bem-vindos os leitores com seus questionamentos e sugestões. Os links sugeridos (em azul no texto) permitem pesquisar mais no assunto.

A recorte da foto de capa de Satolep mostra que há cem anos abundavam entre nós os "andarilhos observadores" (homem no canto à direita).

Anônimo disse...

Fico imensamente feliz com textos que suscitem indagações. Admiro o trabalho do meu colega jornalista, Manoel Magalhães, por sua capacidade de arrancar da cidades visões embaçadas, esquecidas, ou simplesmente reinventar cenários, dando-lhes cores e nuances não pensadas. Um autêntico flâneur. Parabéns pelo post.

Anônimo disse...

Obrigado pela explicação. Valeu.