sábado, 7 de julho de 2012

"A Flor do Sal", poema para Pelotas

"A Flor do Sal", de Mario Osorio Magalhães, é um poema-relato que resume o desenvolvimento da cidade de Pelotas, desde sua pré-história (antes da fundação como freguesia em 1812) até o século XX. A flor do sal é o coalho que cristaliza na produção de sal marinho, mas neste texto a expressão é uma metáfora do florescimento da cidade em torno à fabricação de charque (carne seca e salgada).

Desde 1780 até 1910 Pelotas teve seu "ciclo salgado", do qual derivou sua riqueza econômica e cultural, ainda não igualada pelo "ciclo doce", nascido nos bastidores das charqueadas, e hoje exaltado na FENADOCE.

"Nossa Doce Pelotas", vídeo idealizado em 2009 por Viviane Lino (formanda do curso de Turismo da UCPel), utiliza o poema-guia de Magalhães para divulgar a cidade.

O trabalho audiovisual foi apresentado publicamente no dia 7 de julho daquele ano, e em novembro seguinte destacado como um dos melhores vídeos no 11º Seminário de Turismo e Cultura da UCPel (veja notícia).

Nas imagens aparecem o autor Mario Osorio Magalhães, o locutor Otávio Soares e o músico Leonardo Oxley Rodrigues, que compôs e interpretou a trilha sonora, à base da melodia do Hino de Pelotas (1935), de Romeu Tagnin.

Confira abaixo o texto completo de "A Flor do Sal", transcrito do livro "História e Tradições da Cidade de Pelotas" (Magalhães, Ardotempo, 2011).



A Flor do Sal

Mario Osorio Magalhães
I

Primeiro era o gentio — pagão,
sem Deus, sem devoção, sem luzes.
Ultrapassando as fronteiras,
vieram homens de negro,
que empunhavam cruzes,
e bárbaros maltrapilhos,
que conduziam bandeiras,
adagas e arcabuzes.

E o jesuíta voltou, acuado,
pra o outro lado do rio...
Pois era agora o gentio e gado
— milhares e milhares de cabeças de gado bravio.

Juntaram-se em vacarias,
recolheram-se em currais.
— É, sim, só valia o couro
desses rebanhos baguais.
Mas muito o couro valia!

Foram chegando os tropeiros
— lagunenses e mineiros,
paulistas e cariocas.
Brotaram ranchos, malocas,
nas mais remotas distâncias.
Depois, os açorianos,
madeirenses, transmontanos...
Doaram-se as sesmarias,
domaram-se as valentias,
dobraram-se as alternâncias:
gaudérios/pais de família;
boi xucro/gado de cria;
pampa selvagem/estâncias.

— É, sim, só valia o couro
desses rebanhos baguais.
Muita era a serventia
dessas peles animais:
pra arreios, caronas, tentos,
bainhas, guaiacas, botas...
Centauros, ao desmontarem
dos seus fogosos cavalos,
de botas vararam charcos
e os rios passaram em barcos
de couro que, enfim, chamaram
— que trataram de pelotas.

— É, sim, só valia o couro...
Até que, do além do ouro
das velhas Minas Gerais,
retirante da má sorte,
um homem chegou do Norte;
branqueou de sal as tropas
(nossos rebanhos baguais)
à beira, num descampado,
de um rio que, por devassado
nas travessias remotas,
nossos campeiros monarcas
tratavam, igual que às barcas,
de um mesmo nome: Pelotas.

* * *

Agora valia a carne,
os músculos animais...
Dos mares, dos arredores,
vieram donos de iates
(que juntavam patacas),
trabalhadores negros
(que empunhavam facas),
capitães do mato e feitores.

De recantos bem distantes,
eram famílias chegando,
chegando os comerciantes:
mascates negociando
os seus tecidos; mulheres
se oferecendo aos prazeres.
Carreiras, jogos de azar...
Sempre a se multiplicar
— como em mágicos espelhos —
adultos, crianças, velhos.

Pois nasceu o povoado
poucas léguas afastado
do rio que passava em frente
da primeira charqueada.
Por alvará do regente
e por decisão do bispo,
a aldeia foi registrada
com o nome de São Francisco.

Se bem que intenções devotas
respeitasse, aquela gente
ainda assim preferiu
que se chamasse Pelotas
esta porção do Brasil
— talvez, lá no inconsciente,
querendo que andasse em frente,
seguindo sempre a corrente,
feito um barco e feito um rio...



II

Nesta porção do Brasil,
entre novembro e abril
faz mais calor, menos frio;
menos chove e menos venta.
Pois nesses meses de estio
a fria faca assassina
que empunhava o negro mina
degolava trinta mil
cabeças de boi em cada
charqueada das quarenta
que havia à beira do rio...
Pilhas e pilhas de charque
secando ao sol, no varal;
e as mantas de couro em sal
curtindo, para o embarque
até Rio Grande em iate
e para a Europa em navio
— em navio para as Antilhas,
pra América, pra Bahia,
pra Pernambuco e pra o Rio...
No retorno a embarcação
trazia luz no porão.

Reluzindo feito ouro,
no lugar do charque e o couro,
vinha a Civilização.
(Nessa viagem de volta
o navio vem carregado
das luzes da nova Europa:
o Século vem na troca,
estacionando no Porto,
desembarcando em Pelotas...)

III

Pra diversão nada falta:
são as luzes da ribalta,
concertos e operetas;
músicas, bandas, retretas
no Porto e depois no Parque;
nos intervalos do charque,
os negros com seus batuques;
barões que sonham ser duques,
donzelas com ser senhoras;
poetas às altas horas
declamam pelos saraus;
uns homens, nos carnavais,
transfiguram-se em mulheres;
banquetes de mil talheres,
mil folhas, quindins, pastéis,
fios de ovos, camafeus;
discursos dos bacharéis,
procissões, louvor a Deus,
igrejas e a Catedral...
E o poder dos coronéis,
Miss Universo, bra-péis...

Um dia um banco faliu.
Derrubou-se um casario.
A crise. O mundo atual...
Pela corrente do rio
escorre o ouro animal...
Mas não leva a tradição.
Ainda brota do chão,
crescendo no coração,
Pelotas, a flor do sal!

Imagens:
- Aquarelas de Jean-Baptiste Debret (Charqueada e Pelota)
- "Lancero de la Epoca de Rivera", de J. M. Blanes (Wikipedia)
- Vitral da Catedral de Pelotas (F. A. Vidal)


POST DATA
20-09-12 Veja o post Poemas de Mario Osorio Magalhães.

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