"Rocky Mountain Train", de Lynn Maverick Denzer |
1957. Outubro. O perfume das damas-da-noite mistura-se ao cheiro do carvão-de-pedra. O relógio de parede dispara três toques lânguidos. Os altos e baixos da onda curta imitam os contornos das colinas.
Tem música no ar, aqui dentro. Lá fora o luar não atrapalha o pisca-pisca dos pirilampos vagabundos. Daqui, da face interior da janela, acompanho suas fintas. Aquele que acendeu agora será o mesmo que apagou há pouco?
Prelúdios de Liszt. Três janelas e uma porta. Venezianas abertas. A cadela vem dormir aos meus pés, sobre o pelego. Seus filhotes de três dias adormeceram na cozinha, debaixo do fogão a lenha. Minha saliva guarda ainda o gosto do mate. Notas e acordes organizados por Liszt impedem-me de dormir e, no entanto, convidam-me a sonhar. Pianíssimo. Violinos chegam, docemente. Eu parto para os campos como nuvem, sem sair do plano físico. Corpo na varanda, alma forasteira sobre a serra enluarada.
No bosque, os animais dormem, e a suavidade da música completa a penumbra do luar nas trilhas de cada cerro. Gerânios mal se mexem nas molduras dos canteiros. Passa ao longe, e muito alto, um bando de marrecas tagarelas a caminho de algum lago prateado.
Outubro, 1957. Madrugada. Agradeço, à gentileza desta solidão amável, a paz de um homem só, na infinidade dos próprios sentimentos e emoções infrenes. Sou grato à paradisíaca Serra do Marquês, com suas encostas íngremes, onde escalo meus sonhos em sendas luxuriantes de flores e árvores frondosas.
Das ausências sobra tanta quietude, e institui-se a pátria do sossego nestas terras de mentira. Quanto conforto no pressuposto desejado. Como te adoro, minha Serra do Marquês, que a mentira fez invenção geográfica nas bordas dos meus sonhos, a sudoeste da verdade.
A música está vibrando seus derradeiros acordes em apoteose. O mundo real está voltando. Há um prelúdio. É o de Liszt. Adeus, minha solitária imaginação.
Deogar Soares
Vídeo: Filarmônica de Viena, Valery Gergiev
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