Sentindo a necessidade de um debate maior sobre o assunto do livro, convidei-o a palestrar sobre a psicologia de fundo da assim chamada "vida fácil". O encontro seria em março de 2014 na Sociedade Sigmund Freud, e agora está confirmado para esta quarta (19-3), às 20h (Edifício Everest, Princesa Isabel 280-302)
Sobre o significado dos contos, Schlee diz que com estas histórias quis revelar a prostituição e o tráfico de mulheres que ocorreu em Jaguarão, desde 1930, e denunciar o silêncio com que a sociedade local tapou a memória desses acontecimentos até hoje (v. reportagem Diário Popular). Na apresentação, o autor define os relatos como não moralistas e não eróticos.
Fachada do Clube Instrução e Recreio (foto de 2011) |
O tempo de referência são os anos 30 e 40, precisamente a infância do escritor, quando aquela realidade humana (e desumana) estava à vista de todos mas não era falada por ninguém.
Quem se interessar pelo tema deve também ler La Folie et l'Amour (em português), conto de 2010 que tem relação com a "vida fácil", mas que não foi incluído no livro.
Confira abaixo o texto de apresentação (do próprio Schlee) e as duas imagens que inicialmente seriam as capas opcionais do livro (ambas de Gilberto Perin). Somente a última ficou. Leia também neste blogue a nota Schlee apresenta novo livro de contos e os posts: Os limites do impossível (2009), Contos gardelianos dão terceiro Açorianos a Schlee (2010) e Schlee lançando Don Frutos (2010).
Estes Contos da vida difícil são uma obra da imaginação que não vai além do imaginável, porque está contida na busca das razões do esquecimento, na revelação de certas lembranças não-autorizadas e na tentativa nem sempre bem sucedida de recuperação de uma olvidada memória coletiva. São velhas e sumidas histórias jaguarenses que todos fizemos questão de ocultar desde o início do século XX e cuja lembrança foi preciso reprimir, excluir e suprimir, especialmente a partir de 1930 − e até hoje, já vão quase cem anos.
Jaguarão, que só em 1904 tivera enfim seu porto fluvial aberto à navegação com o Uruguai, viu construir-se entre 1920 e 1930 a grande Ponte Internacional que a ligaria definitivamente ao país vizinho. Nesse período, centenas e centenas de homens − um milhar e pico de homens, talvez − das mais variadas raças e mais diferentes procedências, dos mais diferentes ofícios e das mais variadas habilidades viveram na cidade aquilo que se chamaria “a grande epopeia da construção da Ponte”.
Foram dias, meses e anos em que naturalmente a cidade se encheu de mulheres, apareceram automóveis e gramofones, surgiram negócios e empregos, construíram-se casas e fortunas − era farra e trabalho, trabalho e farra. De noite, havia luz elétrica, música e bochincho: os cabarés iluminavam-se até de manhã; e mesmo os lugares mais pobres, os tristes puteríos das margens do rio ficavam acordados no alvoroto que se armava noite afora (e era como se fossem alegres, e ricos).
Entre 1930 e 32, as redes de traficantes de mulheres tornaram-se escandalosamente públicas nos limites do Brasil com o Uruguai. Nossa fronteira transformou-se num lugar privilegiado para a circulação de mulheres europeias e dos proxenetas que buscavam introduzi-las no Brasil a partir do Atlântico Sul, fugindo da perseguição policial que atingia “o tráfico de escravas brancas” na Argentina e no Uruguai. O Rio de Janeiro era o mercado de colocação preferido; Montevidéu, um refúgio e base de operações; e Jaguarão, com nosso rio e sua Ponte, o lugar escolhido para uma parada delas, de passagem clandestina para o Norte.
Essas informações (como tantas outras sobre o assunto), eu as obtive em um livro, publicado com o título Las rutas de Eros (Taurus, 2006) [v. resenha], pela pesquisadora uruguaia Yvette Trochon sobre o tráfico de mulheres nos países do Atlântico Sul, de 1880 a 1932, incluindo estudos documentados das condições sociais, políticas e econômicas que tornaram possível, na época, a difusão por aqui do rendoso negócio de compra e venda de seres humanos.
Poderá parecer que estes contos, rompendo com um silêncio cúmplice e conivente sobre as misérias da chamada “vida fácil”, não passem da retomada de um passado distante. Contudo, restritos aos limites do imaginável, situam-se no plano de uma mesma e permanente realidade que, se não se esquece e se oculta deliberadamente, tem sido abordada com os prejuízos e preconceitos característicos de uma sociedade conformada por suas próprios mazelas.
O tema relativo ao mercado prostibulário e, especialmente ao tráfico de mulheres foi sempre desenvolvido através de estereótipos, no plano do melodrama de folhetim e do convencionalismo conformista, através de um discurso moralizador de grande poder emocional que o deturpa e que encontra eco na pregação de certos religiosos e reformadores sociais.
Por tudo isto, as histórias de mulheres e homens de vida fácil, girando em torno da sedução barata, da violência gratuita e da perversidade maniqueísta, não têm lugar aqui.
Jaguarão, que só em 1904 tivera enfim seu porto fluvial aberto à navegação com o Uruguai, viu construir-se entre 1920 e 1930 a grande Ponte Internacional que a ligaria definitivamente ao país vizinho. Nesse período, centenas e centenas de homens − um milhar e pico de homens, talvez − das mais variadas raças e mais diferentes procedências, dos mais diferentes ofícios e das mais variadas habilidades viveram na cidade aquilo que se chamaria “a grande epopeia da construção da Ponte”.
Foram dias, meses e anos em que naturalmente a cidade se encheu de mulheres, apareceram automóveis e gramofones, surgiram negócios e empregos, construíram-se casas e fortunas − era farra e trabalho, trabalho e farra. De noite, havia luz elétrica, música e bochincho: os cabarés iluminavam-se até de manhã; e mesmo os lugares mais pobres, os tristes puteríos das margens do rio ficavam acordados no alvoroto que se armava noite afora (e era como se fossem alegres, e ricos).
Entre 1930 e 32, as redes de traficantes de mulheres tornaram-se escandalosamente públicas nos limites do Brasil com o Uruguai. Nossa fronteira transformou-se num lugar privilegiado para a circulação de mulheres europeias e dos proxenetas que buscavam introduzi-las no Brasil a partir do Atlântico Sul, fugindo da perseguição policial que atingia “o tráfico de escravas brancas” na Argentina e no Uruguai. O Rio de Janeiro era o mercado de colocação preferido; Montevidéu, um refúgio e base de operações; e Jaguarão, com nosso rio e sua Ponte, o lugar escolhido para uma parada delas, de passagem clandestina para o Norte.
Essas informações (como tantas outras sobre o assunto), eu as obtive em um livro, publicado com o título Las rutas de Eros (Taurus, 2006) [v. resenha], pela pesquisadora uruguaia Yvette Trochon sobre o tráfico de mulheres nos países do Atlântico Sul, de 1880 a 1932, incluindo estudos documentados das condições sociais, políticas e econômicas que tornaram possível, na época, a difusão por aqui do rendoso negócio de compra e venda de seres humanos.
Poderá parecer que estes contos, rompendo com um silêncio cúmplice e conivente sobre as misérias da chamada “vida fácil”, não passem da retomada de um passado distante. Contudo, restritos aos limites do imaginável, situam-se no plano de uma mesma e permanente realidade que, se não se esquece e se oculta deliberadamente, tem sido abordada com os prejuízos e preconceitos característicos de uma sociedade conformada por suas próprios mazelas.
O tema relativo ao mercado prostibulário e, especialmente ao tráfico de mulheres foi sempre desenvolvido através de estereótipos, no plano do melodrama de folhetim e do convencionalismo conformista, através de um discurso moralizador de grande poder emocional que o deturpa e que encontra eco na pregação de certos religiosos e reformadores sociais.
Por tudo isto, as histórias de mulheres e homens de vida fácil, girando em torno da sedução barata, da violência gratuita e da perversidade maniqueísta, não têm lugar aqui.
Aldyr Garcia Schlee
Capão do Leão, verão de 2013
Fontes das fotos: ardotempo e blogue Poeta das águas docesAutores das fotos: E. C. Barcellos (2), G. Perin (1, 3-4)
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